Outro dia fui interpelado acerca da Constituição Federal de 1988 e a existência de um Estado de bem-estar social no Brasil. Bem, me parece que o welfare state brasileiro é natimorto ou, se é que teve alguma vida, foi efêmero; ele respira os primeiros dias dos trabalhos da Constituinte, mas, ou nasceu com o tumor do protótipo de política neoliberal brasileira, ou foi infectado pelo vírus neoconservador que já transitava no Congresso Nacional naquela altura.
De fato, a normatização dos direitos sociais no texto constitucional de 1988 foi magnífico. Congregou um conjunto de normas semelhantes ao que havia de mais avançado na doutrina européia - daí a alcunha "cidadã". Mas uma das coisas que faltaram ao Poder Constituinte foi assemelhar os direitos sociais aos direitos humanos e defini-los como direitos fundamentais da pessoa humana - deixando aos doutrinadores a tarefa de assim classificá-los. Faço uma pausa para destacar que os direitos sociais contidos na Constituição são realmente direitos humanos inalienáveis, porque são a expressão das previsões contidas na carta de intenções (softlaw) conhecida por Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 - ratificada pelo Brasil em 1989. Daquela imprecisão legislativa de que falávamos a um bocado, surgiu um defeito constitucional (a ser corrigido pela hermenêutica do STF, mas que ficou à deriva): a possibilidade de reformas constitucionais in pejus das normas protetivas dos direitos sociais ali consignadas, inclusive os direitos previdenciários. Isso porquê, não estando compreendidas dentre os direitos fundamentais da pessoa humana (cláusulas pétreas, no sentido do art. 60 da CF), esse ramo constitucional ficou à mercê da rapina neoliberal brasileira - e dos interesses do capitalismo corporativo transnacional. Chegou a ser cômica a novela em torno da reforma previdenciária: direitos adquiridos versus emenda constitucional, intervenções partidárias, muitos discursos verborrágicos e todo tipo de escândalo midiático serviu ao desmonte de uma instituição coletiva/pública de interessa nacional.
A luta pela redemocratização do País passou pela defesa dos direitos das classes oprimidas durante o período militar (por que não dizer, durante toda a ditadura que foi a História brasileira?). Os cidadãos e cidadãs brasileiras jamais tiveram a oportunidade de concretizar uma Constituição por meio de um processo democrático - sendo certo dizer que o movimento das "Diretas já!" foi uma promessa que se concretizou graças aos esforços concentrados de grupos políticos que resistiram durante o período 1964-1986.
Assim, pedindo desculpas às "senhoras da profissão", afirmo com muita liberdade que a Constituição também foi vítima do processo de exclusão social brasileiro. Ela deixou de ser cidadã e virou cortesã, servindo docemente aos interesses esdrúxulos das elites industriais nacionais - que até hoje clamam por maior flexibilização das normas do trabalho (quase apelando à escravidão!). Portanto, resta-nos, agora, planejar o funeral dessa criança natimorta, sendo lícito propor uma nova Assembléia Nacional Constituinte que seja capaz de exorcizar a Constituição programática de 1988 e trazer um novo ordenamento jurídico - um texto constitucional "mais consciente" do papel dos direitos sociais na vida da pessoa humana.* ANTÔNIO T. PRAXEDES é mestre em Direito e doutorando em Sociologia jurídica pela Universidade de Coimbra (Portugal).
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