sexta-feira, abril 27, 2012

A questão agrária e a reforma agrária: críticas ao posicionamento da Avaaz.org - Por Gustavo Liberato

Caríssimos,

Atendendo a convocações e instâncias dos amigos Torquilho, Graça e Giovani, adentro esta comunidade para partilhar uma reflexão que me tomou ares de indignação, pela facilidade com que apresentada e pela "candura" justiceira que veicula.

De logo informo ao leitor que não advogo interesses de "criminosos de fazenda" (como se em algum grau fossem distintos dos demais) ou de escravocratas que reificam a condição humana, o que abomino - como se precisasse dizê-lo aos poucos que me conhecem. Mas devo atender à convocação da razão, acima de tudo, bem ao gosto de um Alber Camus, no seu "La Peste":


"Pero hay siempre un momento en la historia en el que quien se atreve a decir que dos y dos son cuatro está condenado a muerte. Bien lo sabe el maestro. Y la cuestión no es saber cuál será el castigo o la recompensa que aguarda a ese razonamiento. La cuestión es saber si dos y dos son o no cuatro".

Trata-se de um e-mail advindo da comunidade Avaaz.org, sempre muito bem quista pelo autor destas linhas, que, contudo, destoou de seu procedimento usual. Cuida-se de uma convocação à pressão sobre os parlamentares brasileiros no sentido de se aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição - PEC que prevê o confisco, para fins de reforma agrária, das terras onde encontrado trabalho escravo. "Nada mais justo!", poder-se-ia dizer em rápida e irrefletida análise; outrossim, cumpre deixar o emocional um instante de lado, pois, como dito por Umberto Eco em seus "5 Escritos Morais":

“Diverso é, por outro lado, tentar definir 'função intelectual'. Esta consiste em distinguir criticamente aquilo que se considera uma aproximação satisfatória do próprio conceito de verdade – e pode ser exercida por qualquer um, até mesmo por um marginal que reflete sobre sua própria condição e, de alguma maneira, a expressa, do mesmo modo como pode ser traída por um escritor que reaja aos acontecimentos de modo passional, sem impor a si mesmo a decantação da reflexão”.

A "Função Intelectual" é parte indissociável do ser cidadão, e não exclusividade dos intelectuais, como a tautologia poderia fazer crer à primeira vista. De fato, o que se deve alertar para essa proposta é bem perceptível, pois sob as vestes do justiciamento contra a prática criminosa da redução de um ser humano à condição análoga à de escravo, há um palpável interesse de instrumentalização política, como se pode ver a seguir:

I - Passa-se a impressão da inexistência de normas no país, o que deixaria impunes os fazendeiros criminosos:

Ora, se isso for verdade, então inexiste possibilidade de seu julgamento nas esferas criminal e civil. Contudo, tanto os tipos penais existem (v. art. 149, do Código Penal - com apenação de 2 a 8 anos de reclusão no tipo básico, acrescido de multa) quanto se faz possível a responsabilização civil (inclusive com a penhora do bem, mesmo se considerado bem de família, caso o trabalhador seja visto como doméstico - v. art. 3º da lei 8.009/90).

II - Induz, nos arroubos de momento, à ilusão de que a vítima do crime seria beneficiária do confisco:

Essa hipótese não deve ser cogitada, pois se trata de ilação falsa, dado que o bem confiscado seguiria para fins de Reforma Agrária, e não pagamento de indenização às vítimas. É de se ver como se pretende obter, sempre indignamente, dividendos político-eleitorais da reificação alheia! Se o móvel da proposta é a proteção das vítimas, por que não lhes amparar processualmente (via Ministério Público e Defensorias) para fazer cumprir a legislação, inclusive civil, com o ressarcimento de danos materiais e morais? Por que entregar a propriedade à União para que "Ela" frua de dividendos políticos com o populismo? Registro novamente: a propriedade bem deveria ser penhorada para fins de pagamento das dívidas decorrentes de atos ilícitos cometidos contra as vítimas (uso conforme à legislação), e não para uso eleitoral.

III - Consideração de ordem constitucional:

Propõe-se a discussão de uma PEC que previria, a bem da função social da propriedade, mais uma restrição dessa. Contudo, porquanto já assinalado acima, resta evidente que seria necessário um juízo de ponderação, o qual, se devidamente conduzido, não autoriza a conclusão exposta. Com efeito, estar-se-ia instrumentalizando (a bem de certos interesses político-eleitoreiros) o patrimônio que deveria assegurar o valor das indenizações a serem pagas às vítimas do crime. Como, então, realizar a função social da propriedade se o primeiro prejudicado será o próprio vitimado? Simplesmente não faz sentido, a não ser se considerado o interesse de capitalização eleitoral.

Convém não acalentar ilusões; o teatro das sombras midiático e de mercado já se movimenta no sentido eleitoral de 2012 e 2014. Somente com o uso da razão é que se pode levar a efeito a missão central da cidadania: filtrar criticamente tudo o quanto lhe é apresentado como bom, justo e verdadeiro e, por vezes sem conta, frustrar-se, descobrindo o que de fato é e não é, mas sempre evitando o maldito processo de iconização da cidadania, tal como adverte o Prof. Friedrich Müller.

Por igual convém encerrar de logo, dado que não se deve abusar da cortesia feita pelo convite, mas talvez deixando e aberto a oportunidade de novas reflexões e críticas.

Agradecendo a oportunidade, firmo-me em fraternais saudações,

Prof. Gustavo Liberato
*
Gustavo T. Liberato é professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito, na Universidade de Fortaleza. Ministra as disciplinas relativas ao Direito Constitucional.