O título deste texto é uma autêntica provocação; e essa provocação, de certeza, não é uma das mais prudentes atitudes a serem tomadas nos dias que correm. A expressão "filhotes de ditadura" foi cunhada por uma colega professora e, vez por outra, ressoa em minhas memórias como um alerta, uma lembrança de que ainda não superamos o autoritarismo do golpe de 1964. Essa é uma chaga aberta na sociedade brasileira, que ainda não conseguiu discutir todos os aspectos que envolvem o regime de exceção que se instalou no Brasil, de 1964 até 1988 - regime de exceção de um Estado não-democrático de Direito. Esse é mais um problema que se arrasta e que desperta o ódio e a ira de grupos que não conseguem (ainda) estabelecer um debate amplo sobre os males que o originaram e que germinaram durante esse período.
A mudança de regime jurídico-político de 1988, que se inaugurou com a Constituição da República Federativa do Brasil, também não foi eficazmente constituído de forma a resgatar o passado e, no espírito verdadeiramente democrático, efetuar a delimitação da culpa de cada partícipe desse processo - que se inicia num golpe de Estado e que termina na promulgação de um documento regente de um povo com tantas mazelas. O fetiche do legalismo estatista só não foi absoluto porque o modelo jurídico implantado teve o mérito de ter sido conduzido por meio de um debate social, no qual participaram diversas correntes de pensamento e grupos de representação social e de pressão - o que caracterizou o pluralismo político defendido no texto vigente.
Se tal não fosse verdade, não teríamos a necessidade de discutir se adotaríamos uma Monarquia Parlamentarista, por exemplo, ou da discussão do sistema de governo - parlamentarista ou presidencialista. Haviam dúvidas, posicionamentos divergentes, questões históricas e todo tipo de conjectura acerca de nossa vocação sócio-política, e que ainda ressoam nesses grupos que ora são ignorados, ora causam rebuliço naquela paz que adviria do fim do controle e da opressão dos governos militares. Isso para não dizer que, olhada atentamente, a História da República teve a contribuição das forças armadas desde a proclamação dessa estrutura política, passando pela composição da Presidência e nos momentos de intervenção nos governos civis. Entretanto, essa contribuição precisa sempre ser reavaliada, em função da essência do que designa o conceito de "militar": a força que, fazendo a guerra, garante a paz... Então, quer dizer, somos um povo que não atinge a paz, senão por meio da guerra, da violência?
Como é óbvio, a Democracia, por si, não é um instrumento capaz de apagar os erros históricos cometidos pelos governantes e pelas "cabeças pensantes" que comandavam e continuam a comandar os rumos políticos do País. Ela servirá, talvez, para impedir que cometamos os mesmos erros, por meio da experiência adquirida no passado. Porém, somente o preparo e o empenho de uma população comprometida com os ideais de Justiça social, liberdade (de pensamento, de empreendedorismo, de opinião, expressão e consciência) e igualdade (jurídica, política, cultural e de ascensão econômica) poderia concretizar os objetivos e defender os fundamentos do atual sistema político e do ordenamento jurídico vigente. Contudo, esse preparo pressupõe não apenas o conhecimento dos fatos, mas a possibilidade de refletir sobre cada um dos fatores que nos fazem ser quem somos - os "filhotes de ditadura". Ainda, esse empenho indica a abstinência de interesses individualistas e imediatistas que nos impulsionam antes à ação do que à reflexão, embotando o bom julgamento e impedindo a exposição de motivos daqueles que querem (e merecem) ser ouvidos.
Me incluo como membro de uma geração que não teve participação direta nos eventos que concorreram para o início do período em destaque, porque fui espectador passivo e impúbere do sentimento de mudança que acalentava os sonhos de uma liberdade que os meus pais não tiveram. Por sorte (e por várias outras razões), não posso afirmar que passei por perdas familiares, nem fui eu mesmo vítima da perseguição política, nem muito menos decidir agir violentamente para mudar aquilo que parecia imutável. Mas sinto-me no direito de requerer que haja a construção de um debate em torno dessas questões, que possibilite a exposição dos motivos, das razões e das desculpas (mesmo que esfarrapadas) que levaram compatriotas a mutilarem-se e matarem-se uns aos outros, em nome de ideologias e posicionamentos que afetavam a regulação da vida de toda a sociedade brasileira. Inclusive, penso que qualquer forma de autocracia - seja na forma de ditadura, seja na de autoritarismo - é sempre maléfica àqueles ideais destacados do preâmbulo constitucional e que, supunha eu, pudessem dirigir os rumos políticos do País.
Essas preocupações são mais inquietantes quando podemos assistir nos meios de comunicação de massa (até na via digital), a comemoração velada ao autoritarismo que vigorou e ao que continua a vigorar, de maneira difusa, no Brasil. É mesmo a expressão de um sentimento que se encontra arraigado na comemoração da diferença (desigualdade) e numa falsa meritocracia (posto que excludente a partir de privilégios injustamente adquiridos), que impede que o grande público tenha acesso a expressões que são afetas (e prediletas) aos bancos universitários - ainda não democratizados e, em que pese toda tentativa e esforço nesse sentido, continuam elitizados.
Igualmente, me pergunto se, enquanto nação, podemos ser refratários à dor das famílias que perderam entes queridos - e algumas delas, impiedosamente massacradas - por força dessa autêntica guerra de todos contra todos. Talvez, seja necessário dizer que toda a sociedade perdeu com a tortura, os atentados, os enforcamentos, degolações ... que foram a prática corriqueira, tanto dos que se diziam defensores da liberdade, quanto dos que - em nome dessa mesma liberdade - praticaram essas barbaridades. Quantos males já se perpetuaram, e quantos outros ainda se perpetuarão em nome desse valor? Ainda na seara desses valores, quantos critérios seriam aplicáveis à igualdade, que nos colocam como inimigos uns dos outros, num país com riquezas incalculáveis, e quanto é possível se sacrificar esse povo em nome dessa (genérica) igualdade? Que Justiça social é possível diante dos privilégios, dos acordos entre poderosos, da inépcia das instituições e das precárias assistência e segurança sociais?
Enquanto o jogo da verdade continuar restrito aos mesmos jogadores; enquanto a maioria do povo continuar sem uma voz ativa e esse debate estiver concentrado na representatividade de minorias - que se arvoraram em proprietárias desse debate -, haverá solução possível? Quando deixaremos de ser "filhotes da ditadura"?
Esse diálogo é apenas uma fração correspondente a um sofisticado e longo debate, na dura luta pelo poder, pelas mentes e corações...
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