terça-feira, junho 25, 2013

Dilma, plebiscito e quebra da ordem constitucional - será? Por Rodrigo de Lima

Discussão pertinente esta lançada pela Presidente da República, sobre convocar um plebiscito específico popular para tratar de alguns assuntos que pautam a agenda nacional. A respeito do tema, seria interessante observarmos algumas contribuições, em especial as trazidas por Gomes Canotilho (que, creio, todos reconhecem e respeitam, inclusive o nosso STF), Jorge Miranda e diversos juristas alemães, franceses e italianos, infelizmente pouco difundidos.

A questão central parece tratar-se do receio da instação de um poder constituinte (poder de revisão) ilimitado, absoluto, portanto, seja em relação a limites formais (matérias e assuntos a serem abordados), bem como em relação à competência do órgão revisor (competência quanto ao sujeito e limites daí oriundos).



Para as duas hipóteses acima aludidas é farta a contribuição doutrinária, jurisprudencial e de textos legislativos prevendo a possibilidade de instalação de um processo revisor específico, por meio de plebiscito. Apenas a título de curiosidade, e para fundamentar a adoção da tese lançada pela Presidente, existem três limites estabelecidos para o poder de revisão, quanto ao sujeito, estabelecidos pelo pensamento doutrinário:

1. O órgão de revisão é o próprio legislativo ordinário

Aqui no Brasil, isso se daria por meio de aprovação, segundo os ditames constitucionais, de uma proposta de emenda consitucional, ainda que com pareceres de órgãos não legislativos.

Uma observação necessária é a de que, em momentos de constestação da legitimidade do sistema de representatividade como é o caso presenciado no Brasil, essa opção acabaria por ser a mais inviável em termos de efetividade do processo revisório, pois, nos dizeres de CICCONETTI, não deixa de ser uma opção interna e pouco permissiva aos anseios das ruas. Apenas a título de curiosidade, esse modelo foi utilizada pelo “Grande Conselho do Fascismo”, que dava pareceres não vinculantes (em tese) sobre a revisão da Constituição.

A questão é se poder-se-ia traçar um paralelo (de corpo) entre o Grande Conselho e as nossas Comissões Congressuais ou mesmo órgãos de outros poderes. Caso esse modelo fosse o escolhido, ter-se-ia uma representatividade mitigada ou minorada, especialmente quando se trata de momentos de crise institucional (como a que ocorre atualmente, em relação ao sistema representativo).

2. O órgão de revisão é o órgão legislativo, mas a revisão exige a participação direta do povo

O órgão legislativo assumiria a posição de protagonista limitado à manifestação por meio de referendo obrigatório (seja prévio – plebiscito, seja posterior – referendo em espécie) do conteúdo a ser modificado. Essa possibilidade existe e está prevista nas Constituições holandesa (art. 204) e belga (art. 13). É, ainda, a opção adotada pelo sistema francês, (artigo 89 da Constituição francesa) e em termos parciais, pela constituição italiana (artigo 128). Não se esqueça ainda do caso suiça (artigos 18 e 120 desta constituição).

3. O órgão de revisão é um órgão especial

Aqui, poderá o órgão ter ligação ou não com o órgão legislativo normal, podendo ser protagonizado pela reunião das duas Câmaras (Casas Congressuais no Brasil) ou por órgão especialmente eleito para o efeito. Essas hipóteses são admitidas, a título de exemplo, tanto pela Constituição francesa de 1958, em seu artigo 89, item 3, como pela Constituição argentina, em seu artigo 30.

Como se vê, a possibilidade é perfeitamente factível e presente na Teoria da Constituição e na prática do Direito Constitucional, a contrario sensu do que diz o Senhor Luís Roberto Barroso em entrevista publicada no youtube:


A outra questão a ser objeto de tratamento específico diz respeito a existência ou não de limites materiais aplicáveis a um poder de revisão. Numa primeira impressão, a corrente tradicional filia à ideia de ilimitação ou caráter inconteste e absoluto do poder de revisão parece ser a mais lógica. Mas não se sustenta, igualmente, em face da Teoria da Constituição.

A limitação do poder de revisão já pode ser tratada em Loewenstein (em sua obra Teoria de la Constitución), autor não estranho à nossa primaveril academia. Visa barrar a disposição da Constituição ao sabor das próprias maiorias congressuais, inertes ao clamor popular, como parece ser o caso do Brasil na atualidade, evidenciando um deficit de legitimidade democrática dos representantes do Poder Legislativo. Num sistema parlamentarista, a solução seria óbvia, com a queda do Parlamento e a convocação, pelo Chefe do Poder Executivo, de novas eleições. Não é o que ocorre num sistema Presidencialista. As maiorias Congressuais são estáveis e apenas são modificadas – numa primeira análise, pelo voto popular expresso nas urnas. E como essas parecem não representar os anseios das ruas, pertinente que as alterações se façam por meio de outro órgão – o titular da própria soberania, por meio de plebiscito.

Uma das formas existentes em se limitar o poder de revisão é a fixação de prazo (fator temporal) para a realização de um processo de revisão, como parece ter sido a opção de nosso legislador constituinte de 1988 (originário (?)), presentes nos artigos 2º e 3º dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias.

Note-se que o aludido artigo 2º, para além da delimitação de prazo, explicita a limitação de matéria a ser tratada quando atribuiu ao referendo popular a escolha da forma e do sistema de governo que deveriam vigorar no país. Limitação de matéria é, assim, perfeitamente possível, inclusive por meio de constituinte que atribui ao titular da soberania o exercício direto do poder de escolha revisora.

Em segundo lugar, notável o teor do também citado artigo 3º, que, na esteira do artigo 2º, delimita prazo para revisão, mas estalece na segunda parte do dispositivo um poder de revisão geral, a ser realizado nos termos específicos daquele dispositivo, com a validade das proposições adotadas desde que aprovadas pela maioria absoluta dos membros do Congresso, em sessão unicameral – conjunta, portanto.

Vislumbrados tais dispositivos, seria difícil negar que o nosso constituinte (originário (?) não tenham recepcionado as duas possibilidades de revisão do texto – ilimitada e limitada em razão da matéria, qualificada, no caso do artigo 2º, pela participação de órgão distinto do órgão legislativo normal – o POVO.

A baila de uma conclusão, restarai uma abordagem, ainda que passageira, da recepção pela Teoria da Constituição de fixação de limites à atuação do revisor, independentemente do órgão que protagonize a revisão. A esse respeito, H. NEF, autor alemão (Die materielle Schranken der Verfassungsrevision, in ZSR, 1942, pp.III e ss), , citado por Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 4ª ed., 2000, p. 1030), assevera que nem toda matéria poderá ser objeto de revisão constitucional. Há limites. Não seriam eles os inferiores, pois toda matéria não constitucional ou infra-constitucional pode, em determinado momento, sofrer o movimento de constitucionalização.

Agora, outra coisa se passa em relação aos limites superiores. Há normas, como diz o jurista alemão citado por Canotilho, normas cerne da Constituição que não são passíveis de revisão. Podem eles ser expressos ou mesmo implícitos, na esteira do referenciado por Marcelo Rebelo de Sousa (in Valor jurídico do ato inconstitucional, cit., pp. 286 e ss.), de acordo com uma escala de valores pré-estabelecida no próprio texto. O que acaba por se revelar de difícil mensuração em nosso caso, em razão da diversidade das pretensões esboçadas nas ruas.

A mesma questão já havia sido posta por Thomas Jefferson, em seus escritos (Writings) sobre a possibilidade de uma geração impor suas condições à outra. Sua resposta a respeito é culturalista, nos termos de que o “processo histórico”, apesar de incontido, não significa sujeição de todos os valores a um processo revisório. A revisão total ou absoluta, assim, estaria descartada. Nesse mesmo sentido opina Herman Hesse (in Grundzüge, pp. 272-3). E é o que parece ter optado o Constituinte (?) na lavra das cláusulas constantes nos primeiros artigos de nossa Constituição de 1988.

Relativamente à questão, algum pensamento do professor Jorge Miranda a respeito torna-se indispensável:
Daqui não decorre, porém, que o poder constituinte equivalha a poder soberano absoluto e que signifique capacidade de emprestar à Constituição todo e qualquer conteúdo, sem atender a quaisquer princípios, valores e condições. Não é poder soberano absoluto – tal como o povo não dispõe de um poder absoluto sobre a Constituição – e isso tanto à luz de uma visão jusnaturalista ou na perspectiva do Estado de Direito, como na perspectiva da localização histórica concreta em que se tem de pronunciar o órgão nele investido. O poder constituinte está sujeito a limites.
Na sequência, discorre o Professor da Universidade de Lisboa sobre os limites denominados transcendentes, imanentes e heterônomos. Discussão pertinente, mas em outro momento.

A guisa de conclusão, ao menos, em termos de teoria e prática constitucional, gostaria de contribuir para apaziguar os ânimos dos colegas e nobres amigos, concluindo não apenas pela admissibilidade da adoção da proposta feita pela Presidente da República, como também para aplainar, ao menos em termos comparativos e doutrinários da melhor estirpe, a postura do Leviatã em releção ao tema. Temos um sistema de controle de constitucionalidade para eventuais abusos, caso sejam verificados. O que é, discutivelmente, de difícil ocorrência, em face dos ares de sensibilização que norteiam a jurisprudência e prática da Suprema Corte de nosso país. Observemos.


Rodrigo Costa Ribeiro de Lima é Mestre em Ciências Jurídico-Políticas/Direito do Estado – Universidade Coimbra/FADUSP e Professor do Centro Universitá rio do Norte Paulista – UNORP.

Considerações sobre a "Constituinte Exclusiva para a Reforma Política" - por Fernando Castelo Branco

"Muita gente está me perguntando sobre a proposta de um Plebiscito para Constituinte Exclusiva relativa à Reforma Política. Bom, vamos lá:



"O Poder Constituinte Originário, que é aquele que de forma soberana, ilimitada e incondicionada, elaborou a Constituição promulgada em 1988, previu de maneira taxativa a possibilidade de alterações de seu texto. Repito para ser bem claro: previu de maneira TAXATIVA.

"Não há qualquer possibilidade de uma Constituinte Específica para a Reforma Política.

"O Congresso Nacional (e nunca a Presidente da República!) pode convocar um plebiscito acerca de uma nova Assembleia Nacional Constituinte? Pode sim. Mas nesse caso a Nova Constituinte teria poderes ilimitados e incondicionados para elaborar uma Constituição Inteiramente Nova, e não apenas para modificar o texto existente.

"O que Presidente da República fez foi pura retórica. Ela sabe melhor do que eu que a proposta é incostitucional.

"Lembrem-se: o Povo é titular permanente do Poder Constituinte Originário. Pode, a qualquer tempo, se dar uma nova Constituição. Constituinte com poderes originários é incondicional e ilimitada, portanto, não pode ficar restrita à alteração dos dispositivos que versão sobre direitos políticos e eleitorais. Constituinte com poderes derivados, é limitado e condicionada pelo texto da Constituição em vigor. E o texto em vigor não trata da possibilidade apresentada pela Presidente da República. Simples assim".

Fernando Antônio Castelo Branco Sales possui graduação em História pela Universidade Estadual do Ceará, licenciatura plena (2003), graduação em Direito pela Universidade de Fortaleza, bacharelado (2004) e mestrado em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (2008). Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Classes Sociais Democracia e Grupos de Interesse, atuando principalmente nos seguintes temas: direito, história e política externa e democracia.

Genealogia dos Direitos Humanos: um axioma e sete teses - por Costas Douzinas (*)

Abaixo, fazemos a citação da obra de Costas Douzinas, que apresenta 07 (sete) teses acerca da composição teórica dos Direitos humanos.

"O Axioma dos Direitos Humanos - O fim dos direitos humanos é resistir à dominação e opressão, pública e privada. Perde-se essa finalidade quando se tornar a ideologia política ou idolatria do capitalismo neo-liberal ou a versão contemporânea da missão civilizatória.



"Tese 1 - A idéia de "humanidade" não tem nenhum significado fixo e não pode atuar como fonte de moral ou de regras jurídicas. Historicamente, a idéia tem sido usada para classificar pessoas como totalmente humanas, menos humanas e desumanas.

"Tese 2 - Poder e moralidade, império e cosmopolitismo, soberania e direitos, lei e desejo não são inimigos fatais. Ao invés disso, a ordem estrutural de cada época e sociedade são um amálgama histórico específico entre formas de poder e moralidade.

"Tese 3 - A Ordem Pós-1989 combina um sistema econômico que gera uma enorme desigualdade e opressão estruturais, com uma ideologia jurídico-política que promete dignidade e eqüidade. Essa imensa instabilidde contribui para a sua extinção.

"Tese 4 - Universalismo e comunitarismo mais que opostos, são dois tipos de humanismo dependentes um do outro. Eles são confrontados pela ontologia singular da eqüidade.

"Tese 5 - Nas sociedades capitalistas avançadas, os direitos humanos despolitizam a política.

"Tese 6 - Nas sociedades capitalistas avançadas, os direitos humanos tornam-se estratégias para a publicização e legalização do (instável) desejo individual.

"Tese 7 - Para um cosmopolismo do devir (ou a idéia de comunismo)".

 (*) Tradução livre.

Costas Douzinas é professor de Direito, na Birkbeck University. É colunista habitual do Guardian, onde escreve sobre a Grécia. É igualmente conhecido pelo seu trabalho nas áreas dos direitos humanos, da estética, da teoria jurídica pós-moderna e da filosofia política. Entre as suas obras incluem-se "The End of Human Rights" (Hart, 2000) e "Human Rights and Empire" (Routledge-Cavendish, 2007). http://criticallegalthinking.com/author/costasdouzinas/

Agradecimentos à Thiago Mota, que disponibilizou o texto em inglês:

The Human Rights Axiom - The end of human rights is to resist public and private domination and oppression. They lose that end when they become the political ideology or idolatry of neo-liberal capitalism or the contemporary version of the civilizing mission.

Thesis 1 - The idea of ‘humanity’ has no fixed meaning and cannot act as the source of moral or legal rules. Historically, the idea has been used to classify people into the fully human, the lesser human, and the inhuman.

Thesis 2 - Power and morality, empire and cosmopolitanism, sovereignty and rights, law and desire are not fatal enemies. Instead, a historically specific amalgam of power and morality forms the structuring order of each epoch and society.

Thesis 3 - The post-1989 order combines an economic system that generates huge structural inequalities and oppression with a juridico-political ideology promising dignity and equality. This major instability is contributing to its demise.

Thesis 4 - Universalism and communitarianism rather than being opponents are two types of humanism dependent on each other. They are confronted by the ontology of singular equality.

Thesis 5 - In advanced capitalist societies, human rights de-politicize politics.

Thesis 6 - In advanced capitalist societies, human rights become strategies for the publicization and legalization of (insatiable) individual desire.

Thesis 7 - For a cosmopolitanism to come (or the idea of communism).

segunda-feira, junho 24, 2013

Considerações sobre a mobilização das massas no Brasil - por Newton Albuquerque

Os eventos de mobilização de massas no Brasil estão a nos cobrar uma reflexão mais exaustiva, fugindo dos impressionismos e das abordagens unilaterais. A Academia - não a dos músculos brandidos pelos policiais e agentes provocadores - precisa se deter nas expressões contraditórias que se aninham no bojo das manifestações de massa que tem ocorrido.


De um lado percebe-se nitidamente um esgotamento da representação, pelo menos em sua feição liberal clássica, engolfada pela torrente do Capital e dos processos de financiamento eleitoral que tudo constrange e uniformiza. Os partidos, quase sem exceção, incluindo aqui o PT, genuflexa perante as construtoras, as grandes empresas, os banqueiros, as imobiliárias, etc, buscando a grana para o azeitamento das campanhas, cada vez mais "profissionalizadas", cabendo aos militantes um papel mirrado, de tarefeiros acríticos á soldo de estruturas institucionais de candidatos, Vinculação subalterna que adultera os programas de esquerda, rebaixa seus horizontes de ação ao nível da "administração do cotidiano", onde o que prepondera é a racionalidade dos "ganhos parciais", da "melhoria de vida" encerradas na narrativa triunfante do capitalismo global. Pior preso a uma visão legitimadora do consumismo e do ideal medíocre, esquálido do ponto de vista cultural e estético de se tornar "classe média". Daí o esgarçamento, cada vez maior, entre as expectativas dos recém integrados a sociedade e a frágil elaboração civilizatória de alternativas para além da brutalidade da sociedade de mercado. A juventude em especial, apesar da dispersão atomizadora, das apreensões de mundo fundadas no desejo individualista, sente-se esmagada, pressionada em sua existência pelas retortas da uniformidade e do controle asfixiante de um capitalismo devorador do "tempo livre" e da expressão autêntica da personalidade. Tendências mórbidas que não são contrarrestadas por nenhum partido ou movimento tradicional, dada a assimilação pragmática dos mesmos à ordem, ou seja porque a "tribalização moral" de suas reivindicações não cabem em lógicas propriamente institucionais como são os partidos. Nesse sentido, a especificidade da categoria juventude nos lança desafios, requer criatividade para repensar dimensões utópicas que a motivem. "O amor que teme pronunciar o nome" praticado pelas burocracias de determinados setores de esquerda, traveja o desenvolvimento do socialismo, de sua dimensão libertária, da revisitação dos fundamentos ético-políticos do comum. Isso explica um dos fatores da mobilização, mas parece-me que há outros motivos, razões que o explicam que também não podem ser desconsiderados.

Um outro aspecto, a meu ver, tem a ver com a "desilusão" trazida pelos megaeventos urbanos em que se veiculou a crença de que investimentos vultosos catapultariam as cidades, sua gente ao "Primeiro Mundo", produzindo melhorias generosas na qualificação do espaço urbano, na ampliação dos serviços, das ruas, dos transportes, etc. A compreensão que isto não correria gerou um furor cívico na sociedade, particularmente junto àqueles mais suscetíveis a ideologia do 'urbanismo de exceção", dos adeptos da supremacia dos milagres da técnica, das virtudes intrínsecas da modernidade, notadamente em relação a nossa classe média. Tal descompasso trouxe à tona a inviabilidade do plano modernizador, da perpetuidade de nossas mazelas endêmicas que vão desde a insegurança, passando pela precariedade das malhas viárias, dos sonhos "civilizadores" de nos tornarmos uma espécie de Barcelona tropical.

Creio que outro aspecto está relacionado a dinâmica mobilizante de um conservadorismo protofascista que dialoga com as ondas longas do autoritarismo nativo em que o hipermoralismo é apenas a ponta do iceberg do sentimento de repulsa de setores médios, pequeno-burgueses, a "insignificância" de sua função política, social e cultural, após o desplugar das classes trabalhadores de sua direção mais direta. Segmentos da vaga "classe média" que não aceitam ter perdido o protagonismo de sua influência sobre as eleições, nem de figurar como o alvo preferencial das estratégias do país, inclusive no âmbito cultural. A ênfase nos governos Lula/Dilma no "pobreletariado" - como menciona André Singer em seu "Sentidos do Lulismo"- ao mesmo tempo que favorecia o incremento dos ganhos e lucros do empresariado, trouxe a classe média um sentimento de abandono, de secundarização social. Agora seus jovens ao envergar a simbologia do nacional buscam resgatar sua importância, secretando sua revolta, exprimindo seus códigos normativos e valores centrados na exemplaridade da moralidade privada como modelo para a política.

Não tenho a pretensão de apreender toda a realidade, sempre mais complexa e diferenciada, nem pretendo ocupar o lugar dos "cientistas políticos" mais versados no assunto, mas apenas de contribuir para o debate em meio a tantos desencontros, tateios e perplexidades. O fato é que precisamos nos debruçar sobre esses eventos para melhor compreendê-los, disputar sua hegemonia atualmente conservadora, e ajudar a que se dirijam mais à esquerda. Como mais à esquerda precisam ser deslocados o PT e os órgão de representação dos trabalhadores e do povo. O Brasil precisa retomar o veio das mobilizações sociais contra o Capital, recolocar no centro o debate sobre estratégia socialista, aprofundar a democracia.

Newton de Menezes Albuquerque possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Ceará (1993), mestrado em Direito (Direito e Desenvolvimento) pela Universidade Federal do Ceará (1999) e doutorado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2001). Atualmente é Professor Adjunto da Universidade de Fortaleza, professor adjunto da Universidade Federal do Ceará e membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. Atua principalmente em Teoria do Estado Direito Internacional e desenvolve pesquisas com os seguintes temas: sociedade internacional e soberania; Estado nacional e democracia no Brasil e direitos fundamentais.

quarta-feira, junho 19, 2013

O "Gigante acorda": acordou para o que?

Nas últimas duas semanas, temos assistido a um fenômeno bastante interessante no Brasil: insurgências em diversas capitais brasileiras, que colocaram o povo na rua, contra os interesses dos governos de Estados e municípios. Houve também repercussão nacional, quando a Presidente da República, senhora Dilma Rousseff foi vaiada no jogo de abertura da Copa das Confederações. Some-se a isso a manifestação inaugural, na cidade de São Paulo, que desencadeou o processo, exatamente no centro da força econômico-financeira do País.

Mas existe um movimento político organizado? Onde foram organizadas essas manifestações? As informações passadas pelas empresas de comunicação privadas estão sendo manipuladas contra os manifestantes?

A primeira informação relevante acerca das manifestações é que a maioria é composta por donas de casa, trabalhadores da iniciativa privada, funcionários públicos, desempregados, estudantes e professores universitários. É uma massa disforme, não organizada de pessoas que, movidas por vários interesses, convergiram para formar uma multidão de indignados com os mesmos desafios de sempre: inflação, desemprego, corrupção, ineficiência do Estado diante das políticas públicas relativas à saúde, transportes, educação, infraestrutura dentre várias outras.


Um fator também relevante na mobilização popular é óbvia: o fato de o Brasil estar em foco, diante da realização da Copa das Confederações, orquestrada pela FIFA. No País do futebol, alguém reportou, seria natural que os brasileiros aproveitassem o momento para protestar. E protestam, inclusive, diante de diversas exigências relativas a deveres impostos ao governo brasileiro, relativos à segurança e direitos sobre produtos e serviços prestados aos espectadores nos estádios, e assim por diante. Diante dos olhos de milhões de brasileiros, viu-se o governo federal e dos Estados-membros dobrarem-se diante das exigências de tal organismo internacional, além, obviamente, dos elevados gastos públicos com a construção de estádios de futebol e outras obras - todas atrasadas, super-faturadas e, como se declara à boca miúda, objetos de fraudes com desvio de verbas.

Essa multidão organizou-se nas mídias sociais digitais, notadamente, no Facebook e Twitter. A versatilidade dessas mídias, que podem ser acessadas da maioria dos dispositivos de comunicação móvel (telefones celulares, tablets e afins) favoreceu a organização e a disseminação de diretrizes aos manifestantes. Os encontros têm sido marcados em páginas, onde o manifestante consegue não apenas as informações sobre as passeatas, como também arregimenta a participação de colegas e familiares, aos eventos programados em locais públicos.

O interessante desse suporte digital é que, por comportar conteúdo audiovisual, ele tem servido, também, como veículo de comunicação social, demonstrando a truculência com que as autoridades públicas têm tratado os manifestantes. Não é incomum, sendo correto afirmar que abundam fotos e vídeos sobre ataques de ambos os lados - e a violência surge, aqui, como um tema também a ser discutido.

De fato, tanto os governos, quanto os insurgentes alegam que há violência: os manifestantes são acusados de depredar o patrimônio público, além de causar transtorno ao trânsito e aos demais membros da população; os governantes são acusados de usar a força policial para amedrontar e agredir a população. Importante, contudo, é ressaltar o seguinte: estas manifestações são compostas por uma "panaceia" de indivíduos (uma variedade de opiniões e matizes culturais capaz de curar todos os nossos "males" sociais); dentre esses indivíduos, existem aqueles que apelam à violência, e que tem sido até controlados por outros manifestantes. O que é importa é afirmar: a violência e a depredação do patrimônio público e privado não têm sido os objetivos nem a tônica do movimento - a despeito do que temos assistido nas empresas de comunicação televisiva; o movimento tem natureza pacífica.



Quanto aos que se indignam diante disso tudo, um recado breve: esse é um fenômeno social interessante, inovador e que pode ser útil para o aprofundamento da democracia brasileira. Jorge Hélio, meu antigo professor de Direito Constitucional e, atualmente, conselheiro do Conselho Nacional de Justiça, fez a seguinte provocação: "Que tipo de democracia queremos? Uma democracia de manifestações pacíficas? Ou de demonstrações violentas?". Esse questionamento deve ser encarado da seguinte forma: ambas são formas qualificadas de democracia; compete ao povo escolher qual das duas prefere. E a quase-totalidade dos insurgentes escolheram manifestar-se pacificamente.

No meio disso, está a mídia tradicional, sendo acusada de selecionar as informações que são repassadas ao grande público, tendenciosamente favorecendo os interesses dos industriais e governantes. Nesse aspecto, várias são as opiniões e estudos que podem ser chamadas a explicar essa tendência da mídia tradicional, mas prefiro apelar para a seguinte: na composição da mensagem que é passada ao público, além de outros fatores, imperam tanto o sensacionalismo que movimenta os índices de audiência, quanto a óbvia falta de uma percepção sistêmica do problema. Também é cediço que sempre se opta por este ou aquele padrão editorial, que beneficie este ou aquele interesse, mas conjecturar sobre isso é abrir a discussão para um viés que, neste texto, não é a principal "linha editorial" - e o que demandaria um esforço enorme, já realizado em outros documentos lançados neste blog.



Escolhemos a subsidiariedade: aqueles que estão em contato direto com o conflito têm melhores condições de resolvê-lo e maior legitimidade para falar sobre ele. Não pode haver uma dúvida sequer: este é um movimento político, de uma sociedade civil desorganizada. Não está sendo dirigido, até o presente momento, por nenhum partido político, mas é um movimento político. Embora o significado desse termo tenha se perdido nos últimos anos, ele é também ideológico: efêmero e desprovido de essência. Como tudo o que vem se produzindo no campo do social, não há solidez de princípios, nem um foco exclusivo de atuação. Chega a congregar setores político-partidários que, tradicionalmente, são antagônicos, mas tem por mérito a re-utilização e re-significação do espaço público. É uma forma de (des)organização política: informal, autóctone e soberana.

Entretanto, é muito conveniente ressaltar o seguinte: esse movimento ainda é, e provavelmente ainda será durante muito tempo, observado com muita desconfiança pela sociedade brasileira. Não temos a tradição de nos rebelar, porque nossa capacidade política se resume à participação no processo eleitoral, que tem uma periodicidade num interstício de 02 anos. Fomos acostumados a um distanciamento das questões políticas; um ditado popular estabelece que "futebol, religião e política não se discute". Esse dizer popular revela que essas três paixões encontram-se num mesmo nível, e ajudam a compor o imaginário sentimento de pertença da população, unificada culturalmente em torno de alguns "símbolos nacionais": samba, futebol, carnaval e obediência.

Isso significa, também, que espera-se dessa insurgência um comportamento compatível com o estado de torpor que uma sociedade economicamente emergente precisa, para que possa continuar a haver o consumo de bens. É notório e, de uma certa forma, escandaloso que o sistema econômico precise limitar as manifestações populares a níveis ponderados de manifestação democrática; em recente entrevista, o Secretário-Geral da FIFA chegou a afirmar que uma Copa do Mundo organizada num país autoritário, como a Rússia, seria menos problemático do que uma organizada na Alemanha ou no Brasil, onde há democracia. Essa afirmação reconhece a complexidade das demandas sociais, consideradas atentatórias à segurança do consumo dos produto-serviço oferecidos pela FIFA; tal perspectiva teme que a visibilidade do evento seja catalizador de novos protestos e revolta populares. Mas isso também pode ocorrer numa paralização de uma categoria qualquer que, durante um dia semana, no horário comercial, bloqueie uma avenida e impeça outros trabalhadores de trafegar rumo ao trabalho, ou impedir que os consumidores se dirijam aos shopping centers (me ocorreu a origem estrangeira do termo, neste instante...). Segurança para o consumo, segurança para o lucro.

O espaço público, agora, se desloca para um outro lugar. Esse lugar é digital, virtual, mas é tão real como a extinta praça pública. Ele é composto por bits e bytes, e ainda não está completamente regulado, porque é caótico na sua composição, dinâmico na sua entropia e negentropia, e sistêmico na sua operacionalização. Todas essas caracterísitcas tornam bastante difícil um controle sobre as informações que são ali difundidas. Se é certo que um serviço possa ser bloqueado e até mesmo fechado, é também correto que outros sítios agregadores surjam, com velocidade superior à da burocracia estatal. Se as pessoas estão confinadas em seus apartamentos e casas, com cercas elétricas e sistemas privados de segurança; se a praça pública é o espaço da droga e do crime, o cidadão encontrou um novo local para as suas demandas e organização política, e tem partido desse não-lugar de volta às ruas, à praça pública. Liberdade de locomoção, liberdade de expressão e manifestação do pensamento.

As empresas privadas e públicas de comunicação social continuam a ter uma maior inserção, no que pertine ao alcance de zonas rurais e nas camadas sociais sem acesso à Internet (ou que ainda utilizam-na precariamente, como fonte de informação). O que impõe aos insurgentes o desafio de transpor os limites sócio-econômicos naturalmente associados à tecnologia de informação, e de levar as informações sobre o que está ocorrendo ao resto da população.

Por fim, compete-nos avaliar duas coisas: (1) está havendo um conflito jurídico-político, no Brasil e (2) nossa democracia está amadurecendo. Nós que clamamos uma nova hermenêutica, efetuada sobre uma Constituição aberta (para utilizar a expressão de Peter Häberle), e que desejamos nos inscrever como membros de uma comunidade internacional civilizada, precisamos considerar se vamos sacrificar nossa liberdade em prol da segurança; se vamos aquietar nossas indignações e assegurar nossos interesses de mercado (sim, fazemos parte dele, pois somos produtores-consumidores de bens e serviços, e não nos resta mais nenhuma gota de hipocrisia para esconder isso). Temos que decidir, ainda, se vamos continuar vivendo numa Democracia não-democrática. Esse é o legado que temos a deixar, para a próxima geração.

Fotos e vídeos recolhidos na manifestação ocorrida hoje, na cidade de Fortaleza, registrando a violência policial patrocinada pelo Governo do Estado do Ceará.