Numa de minhas recentes conversas com a professora de filosofia Sandra Helena Sousa, conversávamos sobre o sucesso dos Torneios Erísticos, organizados a nível de graduação, na modalidade "curso de extensão", para os alunos da Universidade de Fortaleza. Estávamos avaliando os resultados, que julgávamos positivos, sobre a participação e engajamento dos alunos, não apenas pelos temas em si (adoção de filhos por casais homoafetivos e aborto de fetos anencéfalos), mas pelo motivo que me faz escrever agora: a Sociedade brasileira está se preparando para os grandes debates. Esse preparo tem tudo a ver com a Democracia.
Quando comecei meus estudos sobre História da Filosofia, me chamou a atenção o fato de que os gregos desenvolveram-na -- a Demokratia -- com o intuito de substituir a força da violência pela força do consenso, e, também, por um fator pouco discutido, mas que considero válido e de extrema importância: à semelhança do que aconteceu em outros momentos da história, houve um aumento médio da riqueza do homem grego, o que fez surgir disputas pelo poder de administração da cidade, entre os aristocratas e os novos ricos, que se beneficiaram das expansões militares e comerciais gregas.
É nesse momento que surgem alguns desdobramentos daquilo que chamamos filosofia, no que ela tem de mais significativo no discurso: surge a retórica, a oratória, a transmissão da mensagem como forma de arte e de saber. É claro, entretanto, que houve outras reviravoltas no desenvolvimento dessas aptidões, como a procura socrático-platônica pela Verdade, pela categorização aristotélica, e tantas outras, que tinham por oponentes os sofistas e seu relativismo, por exemplo. Mas é exatamente desse momento inicial que estamos a falar: o do despertar do debate, a convicção do orador, seu pathos, ethos e logos, dos topoi, da construção de um arcabouço que orientou a construção do discurso político de tradição eurocêntrica -- de cuja tradição brasileira é parcialmente herdeira.
Nós não temos nem experiência, nem tradição com Democracia. Por várias razões, e uma das mais importantes é a nossa colonização e sua ancestralidade anárquica: "Há, na parte mais ocidental da Ibéria, um povo muito estranho: não se governa nem se deixa governar!" (frase atribuída ao General Galba, primeiro administrador da Península Ibérica). Os chamados "degredados" que aqui vieram estabelecer suas colônias -- com as práticas da escravidão e da servidão, conforme a origem étnica de cada indivíduo -- conviviam com a pirataria nas águas internacionais, e com uma monarquia corrupta e ineficiente -- que fez uma péssima aposta no metalismo, sem acompanhar o desenvolvimento comercial de seus pares europeus.
Nossa primeira Constituição, outorgada por Dom Pedro IV - inocentemente chamado nestas terras de D. Pedro I -, que se propunha a ser uma Carta liberal, na realidade disso passou longe, e representou, na prática, um distanciamento entre as esferas do político e do jurídico. Criou um Império que, nos termos do artigo 3, teria um governo "Monarchico Hereditario, Constitucional, e Representativo", sendo que aqueles que quisessem se candidatar para os cargos de senador deveriam ter renda de oitocentos mil réis (art. 45, inciso IV), e para os de deputado, quatrocentos mil réis, de renda líquida. Porém, não podemos ser ingênuos e achar que tais limitações tenha sido uma inovação lusitana.
Os inventores do regime democrático, e seu marco ateniense, excluíam da participação na Ágora os estrangeiros, escravos, menores de vinte e um anos e as mulheres. Foi um governo de homens maduros, cidadãos gregos, livres, que tinham por preocupação o estabelecimento de regras para a organização da Cidade-Estado. Era, portanto, também ele, na origem, excludente. Esse tipo de administração da res publica pressupunha pessoas num mesmo nível social, discutindo assuntos de seu interesse - através do diálogo, do consenso, decidiam sobre "seus" assuntos "públicos".
É por isso que não me espanto quando vejo pessoas como Luiz Felipe Pondé discutindo os perigos da Democracia com meia dúzia de "formadores de opinião". A Democracia tem perigos, sim. Um dos mais graves é a falsa construção do conceito de "Bem Comum", ou a noção de "Justiça", ou qualquer uma das ideias que povoam o inconsciente político ocidental.
Platão, no devaneio que teve em sua obra "A República", já fazia menção à necessidade de fazer com que os homens do povo respeitassem às leis, para que fossem felizes, mesmo que para isso fosse necessário ao Legislador (Filósofo-Rei) o uso da mentira. Numa sociedade de massas, do homem-massa, quantas vezes já não se cometeram atentados contra minorias, e quantas outras vezes assistimos continuamente ao embate entre os diferentes grupos? Como reagir, diante do "discurso da democracia global" sendo empurrado ao redor do mundo, pela força das armas?
Esse também foi um diálogo que tive com os juristas e professores Rodrigo Saraiva Marinho e Giovani Magalhães. O que quer o povo? Democracia é realmente o melhor regime político? As inqueitações que o tema traz são enormes, principalmente porque o regime democrático como uma garantia -- e nos esquecemos do nosso recente autoritarismo.
Mas temos que nos lembrar de que este é o "desafio-Democracia": ela pressupõe o preparo, o diálogo, a troca de experiências e, acima de tudo, o reconhecer das particularidades, do indivíduo e das diferentes formas de ser e estar. Ela deva englobar a divergência nas perspectivas, e deixar aos indivíduos a possibilidade de errar. Sim! Nós podemos errar! Nós temos o direito de errar, porque nós também temos o direito de mudar de opinião. Como também temos o dever de transmitir aquilo que conhecemos como correto -- coisa que os intelectuais se negam a fazer: ir ao encontro do povo, ao invés de ir de encontro a ele; muitos acadêmicos mantém-se entre o "povão" e o "povinho", escondidos em seus gabinetes de ar-condicionado...
Ainda temos que perceber o seguinte: a tecnocracia também não é uma solução, ao contrário do que vem sendo ventilado ao longo dos últimos anos no Brasil. Se os políticos corruptos podem roubar, é porque recebem a excelente assessoria técnica de burocratas muito bem versados nas artes jurídicas, econômicas e contábeis! Esses, os tecnocratas, tomam suas decisões técnicas, sem a minima moralia.
Assim, eu finalizo este pequeno ensaio -- todo escrito em primeira pessoa -- para lhes dizer o quanto estou feliz porque estou no gozo de minha liberdade democrática de livre pensar, de livre expor as minhas ideias, por mais que tenha escrito um monte de asneiras, deixando você também livre, para acreditar, refutar, enfim, me "encher o saco"! Mas você não pode me impedir de dizer o quê eu penso...
(É preciso ser ambíguo)
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