sexta-feira, outubro 31, 2008

"Uma Casa Branca Negra" - Por Boaventura de Sousa Santos*

(Publicado na Visão, em 23 de Outubro de 2008)

«É muito provável que o próximo presidente dos EUA seja um afro-descendente. O significado de tal facto é enorme e insere-se num processo histórico mais amplo. As três últimas décadas foram de muita esperança e desilusão a respeito da democracia representativa. Muitos países conquistaram ou reconquistaram a democracia neste período mas a garantia dos direitos cívicos e políticos ocorreu de par com a degradação dos direitos sociais, o aumento da desigualdade social, da corrupção e do autoritarismo.

«O desencanto, numa época em que a revolução não foi uma alternativa credível à democracia, fez com que surgissem novos actores políticos, movimentos sociais e líderes, na maioria dos casos com poucas ou nenhumas vinculações à classe política tradicional. As Américas são uma ilustração eloquente disto ainda que os processos políticos sejam muito diferentes de país para país. Em 1998 um mulato chega à presidência da Venezuela e propõe a revolução bolivariana; em 2002 um operário metalúrgico é eleito presidente do Brasil e propõe uma mistura de continuidades e rupturas; em 2005 um indígena é eleito presidente da Bolívia e propõe a refundação do Estado; em 2006 um economista sem passado político é eleito presidente do Equador com a proposta da revolução cidadã; em 2006 e 2007 duas mulheres são eleitas presidentes do Chile e da Argentina respectivamente e com projectos de continuidade mais ou menos retocada; em 2008 um bispo, teólogo da libertação, é eleito presidente do Paraguai e põe fim a décadas de domínio do partido oligárquico através da aliança patriótica para a mudança, e ainda em 2008 é provável que um negro chegue à Casa Branca com o slogan: “Change, yes we can”. Uma nova política de cidadania e de identidade, sem dúvida mais inclusiva, está a impregnar estes processos democráticos, o que nem sempre significa uma política nova. Por isso pode ser um sol de pouca dura. De todo modo, é importante que líderes vindos de grupos sociais que na história da democracia mais tarde conquistaram o direito de voto assumam hoje um papel de preeminência. No caso dos EUA, isto acontece apenas quarenta anos depois de os negros conquistarem direitos cívicos e políticos plenos.

«A eleição de Obama, a ocorrer, é o resultado da revolta dos norteamericanos ante a grave crise económica e a estrondosa derrota no Iraque, apesar de declarada como vitória até ao último momento, como já aconteceu no Vietname. O fenómeno Obama revela contraditoriamente a força e a fragilidade da democracia nos EUA. A força, porque a cor da sua pele simboliza um acto dramático de inclusão e de reparação: à Casa Branca dos senhores chega um descendente de escravos, mesmo que ele pessoalmente o não seja. A fragilidade, porque dois temores assolam os que o apoiam: que seja assassinado por racistas extremistas e que a sua vitória eleitoral, se não for muito expressiva, seja negada por fraude eleitoral, o que não sendo novo (o W. Bush foi “eleito” pelo Supremo Tribunal) representa agora uma ocorrência ainda mais sinistra. 

«Se nada disto ocorrer, um jovem negro, filho de um emigrante queniano e de uma norte-americana, terá o papel histórico de presidir ao fim do longo Século XX, o Século americano. A crise financeira, apesar de grave, é apenas a ponta do iceberg da crise económica que assola o país e tudo leva a crer que a sua resolução, a ocorrer, não permitirá que os EUA retomem o papel de liderança do capitalismo global que tiveram até aqui. Em nome da competitividade a curto prazo foi destruída a competitividade a longo prazo: diminuiu o investimento na educação e na saúde dos cidadãos, na investigação científica e nas infraestruturas; aumentaram exponencialmente as desigualdades sociais; a economia da morte do complexo militar-industrial continua a devorar os recursos que podiam ser canalizados para a economia da vida; o consumo sem aforro nativo e o belicismo sem recursos próprios fizeram-se financiar pelos créditos de países terceiros que não vão continuar a confiar numa economia dirigida por executivos vorazes e irresponsáveis que se atascam em luxo enquanto as empresas abrem falência e transformam os seus passivos em endividamento das próximas gerações.

«A União Europeia já chegou a esta conclusão e parece ter a veleidade de tomar o lugar dos EUA, apesar de nos últimos vinte anos só não ter sido uma aluna mais fiel do modelo norte-americano porque os cidadãos não permitiram. Acresce que nas relações com os países que na América Latina, na África e na Ásia podiam ser parceiros de um novo modelo económico e social mais justo e solidário a UE persiste em assumir posições imperialistas e neocoloniais que lhe retiram qualquer credibilidade. A transformação não virá da UE ou dos EUA. Terá de lhes ser imposta pela vontade dos cidadãos dos países que mais sofreram com os desmandos recentes do capitalismo de casino.»

* Boaventura de Sousa Santos é Professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick. É igualmente Director do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Director do Centro de Documentação 25 de Abril da mesma Universidade e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.

segunda-feira, outubro 27, 2008

A pena de morte no Brasil

No Brasil, a lei quase nunca encontra amparo na realidade, quer porque não se reconhece a sua legitimidade, quer porque simplesmente não se aplicam as regras previstas, quer ainda porque a prática social ignora a imperatividade normativa.

O caso da pena de morte não é exceção à este fato. Dia após dia são-nos reportadas as chacinas em cadeias, presídios e nas ruas das grandes e pequenas cidades. Casos de pena de morte, levados a cabo por autoridades públicas e por particulares, ao arrepio da lei, são práticas frequentes, e surgem como forma de punir (principalmente) pessoas que se encontram à margem da Sociedade.

Embora a legislação brasileira proiba a justiça privada ou popular e garanta o exame judicial às lesões e ameaças ao Direito, o fato é que, de uma forma direta ou indireta (de maneira ativa ou passiva), o Estado brasileiro "permite" a ação de esquadrões da morte, forças para-militares, grupos de estermínio, tortura (seguida de morte) -- para não falar da nova "moda" em política de segurança pública, que confere discricionariedade imediata aos de esquadrões de polícia especial, para aplicação de penas de morte nas favelas dos grandes centros urbanos.

A alínea "a" do inciso XLVII do artigo 5.º da Constituição Federal de 1988 estabelece que não haverá pena de morte, "salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX". Assim, somente em caso de agressão externa e com o aval do Congresso Nacional é que o Presidente poderá declarar guerra e poderá se legislar autorizando a pena de morte.

Mas o que acontece na realidade? Na prática, a fiscalização precária, a corrupção institucional generalizada, a aquiescência da Sociedade e a inexistência de políticas públicas legalizaram a pena de morte no Brasil. Na realidade, está anunciada uma nova espécie "guerra civil", em todo o território nacional.

Crise financeira e mídia, ou o Sol e a peneira

As explicações sobre a atual crise financeira pululam na mídia internacional. Acusações e desculpas correm por todos os lados, e culpados há muitos -- claro, dentre os que apostam no mercado financeiro. Nesse contexto, ao que tudo indica, cada grupo/empresa de comunicação social parece querer defender esta ou aquela "melhor explicação" para o fato de que eu, você ou todos nós vamos arcar com os prejuízos do esquema de enriquecimento ilícito praticado pelos grandes bancos do sistema financeiro global.

Por que a BOVESPA e outras bolsas de valores estão em queda? Porque os investidores internacionais estão exigindo a liquidez de seus títulos, porque o sistema financeiro internacional está na bancarrota. Em Agosto deste ano o FED (Banco Central dos EUA) já havia emprestado em torno de US$ 2 bilhões a quatro grandes bancos norte-americanos (Bank of America, JP Morgan Chase & Co, Citigroup e o Wachovia Corp.), e no começo deste mês de Outubro já havia anunciado um pacote de US$ 700 bilhões para salvar outros bancos do destino do Lehman Bros., ou seja, a falência.

Não há necessidade de explicações "mágicas" ou mirabolantes: o sistema ruiu. E a culpa reside nas "expectativas racionais" dos CEO's que, em busca de lucros e através de uma verdadeira "pirâmide financeira", conseguiram empréstimos financeiros e deram como garantias os passivos que tinham a receber, isto é, as dívidas sobre empréstimos de consumidores e clientes desses mesmos bancos.

Por um lado, apesar de estar pacificamente demonstrado que o colapso econômico que se propaga ao redor do mundo está intimamente ligado à captação de alto risco praticada por grandes bancos norte-americanos e ingleses (que inundaram o sistema financeiro global com garantias fictícias), a Folha de São Paulo parece querer adotar um «"jornalismo" autêntico», confundindo os efeitos com as causas -- como estabelece " o porquê disso" da reportagem que se lê aqui.

De outro lado, o que se pode perceber no conjunto dessas reportagens "bem orientadas" é que, ao que tudo indica, os governos devem mesmo intervir na saúde econômica. Só que as medidas econômicas concentram-se em garantir a rentabilidade a saúde dos bancos, na medida em que essas instituições seriam indispensáveis ao correto funcionamento do sistema econômico.
  • Minhas perguntas:
Havendo imperícia, negligência ou imprudência, não há necessidade de reparação? Qual o limite da culpa dos indivíduos que movimentaram esse "esquema"? Não haveria uma norma sequer, a regular essas atividades (a nível nacional, regional ou internacional)? Não seria possível fazer um julgamento político dessas instituições e limitar-lhes esse poder absoluto? Para que(m) trabalha o Estado afinal?
  • Minhas questões:
1) Qual é o motivo de tanta cautela midiática? Um dos motivos seria evitar o pânico entre os consumidores -- e uma inevitável e infrutífera corrida aos bancos, para retirada de aplicações, investimentos, poupanças e valores em conta corrente. Outro motivo seria tentar reverter o irreversível, na esperança de ressuscitar o já pútrido mercado de ações global. Neste item, há vasto campo para especulações - desculpe-me o trocadilho.

2) Se não há tanta cautela, contrariando o dito anteriormente, por que a linguagem utilizada na mídia é o "Economês"? Porque existe uma profunda ligação entre a linguagem e o Poder. Quem controla uma determinada linguagem acaba por exercer o controle sobre um determinado tema, e na seara econômica, os termos utilizados são "trade-off", "hedge", "sub-primes". Sim: a economia fala inglês. Some-se a isso as incompreensíveis siglas -- irreproduzíveis e inúteis neste momento.

3) Por que encobrir uma mudança na atitude política do Estado frente à Economia? Porque é preciso garantir que o nível de confiança da população mundial no sistema permaneça minimamente estável -- inclusive para que o sistema possa ser "reiniciado", para usar uma expressão da Informática. Porque o sistema tem funcionado com intervenções pontuais (ditas mínimas) do Estado durante quase 30 anos -- atuação necessária para garantir a saúde de grandes empresas e corporações multinacionais. Porque há um crescente receio e uma preocupação constante que esse "reinício" seja marcado por uma "grave" agitação social -- que altere profundamente as "regras do jogo".

Entretanto, convém advertir que mesmo que existe um sistema exo-congruente ao sistema financeiro, a gerir todo esse processo de (re)inserção do Estado na Economia: o sistema Jurídico. Pelos princípios consagrados neste campo, toda e qualquer instituição "social", quer por destinação originária, quer por contingência, está imersa sob o controle e diante do exercício da legalidade. Ainda, se os atos jurídicos devem estar conforme à legalidade, havendo ruptura da harmonia desejada (a violação do Direito), é necessário apurar a autoria da ação danosa, a extensão da culpa dos autores e os eventuais danos causados.

Portanto, digam o que quiserem, os jornais e seus repórteres -- os jornalistas estão ausentes (?). O que se torna inadmissível é não haver a responsabilização de diretores e presidentes das instituições financeiras que organizaram essa ciranda financeira, porque o resgate desse prejuízo é pago com dinheiro público.

quarta-feira, outubro 15, 2008

A crise financeira já era esperada

A última semana foi marcada por um grande burburinho na mídia global: estava anunciada uma crise financeira, causada pela bolha especulativa que já havia sido detectada por economistas no início dos anos 2000. Enquanto a inflação atinge bilhões de pessoas ao redor do mundo e os investidores não conseguem estimar se o sistema voltará a funcionar "normalmente", os governos do grupo dos G8+Rússia anunciam planos de recuperação financeira, despejando no mercado somas astronômicas (de dinheiro público).

De fato, a atual crise teve suas origens nos começo dos anos 1970, quando os Estados Unidos da América puseram fim à regulamentação do mercado financeiro e ao lastro em ouro da moeda norte-americana, quebrando o pacto do pós-guerra de Bretton Woods e estabelecendo o dólar como a moeda de trocas internacional.

Com efeito, se retornarmos na linha temporal, poderemos ver que, com a chegada ao poder da linha de pensamento neoliberal foram abandonas as políticas de intervenção estatal na economia, nomeadamente, aquelas que exerciam controle sobre o sistema financeiro e, concomitantemente, sobre o mercado internacional de capitais. Chamem-lhe "tatcherismo" ou "reaganismo", o fato é que, desde que a teoria das expectativas racionais de Milton Friedman foi laureada com o prêmio Nóbel de Economia (1976), o mercado assumiu um status de omnipotência sobre a política, e a intervenção dos Estados no sistema mundo de produção capitalista globalizada foi combatida duramente pelo núcleo duro do pensamento economicista mundial.

Foi dessa lógica de não-intervenção que surgiram diversas "recomendações" e "consensos" econômicos, traçando as novas diretrizes e finalidades aos Estados: a desregulamentação da economia e do mercado de trabalho; a diminuição de custos produtivos pela desconstrução dos direitos sociais e assim por diante. Um dos melhores exemplos a ilustrar esse conjunto de diretivas é o documento elaborado pelo FMI e pelo Banco Mundial: intitulado "Consenso de Washington", ele contém em 10 pontos todos os itens de uma receita neoliberal para a nova ordem mundial.

Continuando essa "fábula da sabedoria do mercado", nos anos de 1990 o mundo assistiu perplexo ao turbilhão financeiro causado pela volatilidade dos investimentos especulativos na economia mundial. Argentina, Rússia, Brasil, México e os "Tigres Asiáticos" foram atingindos por um "tsunami econômico" quando, numa rápida intervenção especulativa, um grupo de "investidores" movimentou um volume absurdo de capital que entrou e saiu daqueles mercados, causando a queda dos índices das bolsas de valores daqueles países e um colapso em suas economias que, para "voltarem ao normal", precisaram de várias intervenções (leia-se "empréstimos financeiros condicionados") do FMI.

Finalmente, no início do século XXI o mercado financeiro foi surpreendido pela crise das empresas ¨ponto.com" norte-americanas. Aquele foi outro exemplo de uma bolha especulativa, pois representou a super-valorização de empresas que tiveram as suas cotações valorizadas ao patamar da de grandes empresas, como IBM, Microsoft, Ford, GM e GE -- a despeito de funcionarem em pequenas garagens, não terem mais que 01 funcionário (que era, geralmente o próprio dono da "empresa") e não produzirem outra coisa senão pequenos bancos de dados.

E o que adveio disso? A crise das "sub-prime"; uma crise que vem crescendo ao longo dos últimos 11 anos, caracterizada sobretudo por uma estrondosa acumulação de capital e pelo aumento do fosso que separa ricos e pobres, numa escala global. O aumento da pobreza e da miséria ao redor do mundo vem chamar atenção de inúmeros pesquisadores e cientistas sociais a uma catástrofe sem precedentes na história do capitalismo pós-moderno: um endividamento global que supera em dez vezes o PIB mundial; estima-se que a bolha especulativa tenha gerado um débito global de US$ 600 trilhões, quando o PIB (ou riqueza concreta) mundial é de US$ 60 trilhões. Isso faz uma pessoa pensar que se 11% dos credores exigirem a liquidez de seus créditos hoje, o mundo financeiro entrará em colapso - o que, por si só, já é um fato assustador.

Esse cenário não é de crise. Vivemos o início de uma profunda depressão e, conseqüentemente, de uma mais que obrigatória reestruturação do sistema financeiro mundial, à semelhança do que aconteceu nos anos de 1930. Diante disso, as grandes economias irão sacrificar o dinheiro dos contribuintes para cobrir o buraco nas contas das instituições financeiras - que há décadas vêm praticando essa ciranda financeira global.

Entretanto, a pergunta que não quer calar é: os grandes "investidores" devolverão os lucros obtidos nessa operações especulativas aos Estados e às populações? Eles poderão ser responsabilizados patrimonialmente pelo desastre que provocaram? A resposta é simples: não.

sexta-feira, outubro 10, 2008

Novos desafios ao ensino superior europeu

Preliminarmente, pode-se dizer que o "Processo de Bolonha" é um projeto de harmonização dos sistemas de ensino superior dos Estados-membros da União Européia. O que se deve dizer depois disso é que, assim como as outras áreas sociais da UE, esse projeto também representa um grande desafio político às autoridades comunitárias e nacionais. Porém, o que me chamou atenção não foram as questões políticas da questão, mas as práticas e seus efeitos imediatos no corpo discente das universidades européias.

É evidente que no primeiro momento, os alunos surpreendidos pelas alterações tenham ficado inseguros, diante não só da pouca informação acerca das mudanças mas, também, cobertos de incertezas diante de um projeto obscuro e do qual não se poderia obter uma previsão concreta quanto aos resultados dessa harmonização. Os protestos ecoaram nas principais e mais tradicionais universidades sem, entretanto, conseguirem obstar as mudanças que já estavam nas agendas de reitores e ministros de educação europeus já havia algum tempo.

Do ponto de vista operacional, o "Processo de Bolonha" foi um desastre: nos programas de doutoramento e mestrado, por exemplo, os alunos que não pertenciam aos centros de pesquisa das faculdades que ingressavam na pós-graduação viam-se excluídos de contato com os professores orientadores, vez que estes últimos já estavam comprometidos com os projetos de pesquisa anteriores a esses novos cursos. Além desse descompasso entre a oferta de vagas nos cursos de pós-graduação e o efetivo ensino/pesquisa, a falta de investimentos públicos no ensino superior transformaram esses cursos de pós-graduação em verdadeiras fontes de recursos financeiros às faculdades e centros de pesquisas que, ao invés de formar novos pesquisadores, passaram a aprovar cursos no modelo "curso de verão", isto é, sem a absorção de novos pesquisadores e sem a devida orientação aos alunos.

Na graduação a situação não é diferente. Com professores sobrecarregados e diante dos desafios de manutenção dos cursos e das folhas de pagamento de professores e funcionários, a qualidade do ensino é a primeira a decair. Depois, a reestruturação dos currículos e a obrigatoriedade dos estágios condicionam não só a entrada dos graduados no mercado de trabalho, mas a despenalização das famílias que vêem-se cada vez mais endividadas perante as exorbitantes propinas cobradas no valor anual dos cursos.

Esse desmonte do ensino superior é mais uma das conseqüências de um processo muito mais amplo de reformulação das funções do Estado. Quanto mais a UE migra em direção às diretrizes do Consenso de Washington e das orientações micro-econômicas da OCDE, menos o Social ocupa a agenda tanto em nível supranacional, quanto em nível nacional. Todas essas mudanças não causam a menor surpresa a qualquer brasileiro, visto que nos anos de 1990 nós pudemos assistir a essa reestruturação do "mercado de ensino" e o consequente emergir de centenas de instituições de ensino superior privadas - surgidas da completa incapacidade do Estado em subverter ou se opor às diretivas econômicas supra citadas.

É de lamentar o fato de que a UE tenta transformar o sistema de ensino europeu num verdadeiro mercado de ensino: é recorrer à venda de diplomas em atacado. Não parece que o funcionamento desse tal novo modelo encontre simetria com o projeto de se criar uma Sociedade do Conhecimento no espaço europeu. Nesse caso, os europeus terão que se contentar com uma Sociedade da Informação - cada vez mais acrítica e mecânica na reprodução da dados.

quinta-feira, outubro 09, 2008

Estado e mercado: velhas e novas alianças

O cenário atual da economia global não poderia ser mais irônico: o mercado socorre-se do Estado. Este é um retrocesso da política à economia, sem dúvida alguma, mas com uma ação silenciosa: a transferência de fundos públicos aos privados. 

Ora! O independente e livre mercado agora precisa da inteligente, cautelosa e necessária intervenção (dinheiro) do Estado, para que o mundo não vá à bancarrota. O que significa dizer que agora privatiza-se o dinheiro público ou, o que dá no mesmo, que o Estado se responsabiliza pela atuação fraudulenta/irresponsável dos grandes atores (big players) do mercado financeiro internacional.

Esta idéia de intervenção pode não parecer tão estranha aos brasileiros - visto que nossa economia até pouco tempo andava puxada à carroça. Mas tente explicar isso a um norte-americano e ele logo identificará o temível e injustificável socialismo no centro da questão. Só que, neste caso, dois pesos e duas medidas: socialismo para os ricos (os grandes investidores) e capitalismo selvagem para os pobres (os desempregados, despejados e que, acima de tudo, vão pagar a conta pela via do empréstimo público, fruto da recolha de impostos).  

O que me faz pensar que, na realidade, do meio das nacionalizações (fato impensável há menos de 36 horas, dia 9 de outubro de 2008), brota a noção de que nada mudou e que o Estado (enquanto instituição) é o que sempre foi: um vassalo do sistema de produção. Eis a velha-nova aliança.