Muito tem se discutido para onde foi ou para onde caminha aquilo que se convencionou chamar de "esquerda". Outra forma de colocar a questão é discutir se têm razão os pós-modernistas que pregam o fim da ideologia e, consequentemente, o fim do pensamento de esquerda. Temos aí muito o que dizer, mas quero pensar apenas a esquerda em geral, para falar da esquerda "comportada" em pormenor.
A origem da "esquerda" não poderia ser mais folclórica do que a sua própria raiz: vinha do posicionamento dos membros da Assembléia Legislativa pós-revolucionária francesa, na qual os membros da aristocracia sentavam-se à direita e os membros da pequena burguesia sentavam-se à esquerda. Tão simples como isso. Entretanto, a importância dessa divisão reside no apoio popular que os membros da "esquerda" recebiam, o que lhes dava respaldo para atuar na Assembléia em nome do povo (aí está, portanto, a origem do poder burguês no sistema representativo da democracia liberal).
Daqueles tempos para cá, o conceito político de esquerda ganhou um novo significado, nomeadamente após o advento das idéias socialistas que se alastraram na Europa do século XIX, opondo-se à exploração capitalista selvagem dos trabalhadores. Assim, pode-se afirmar que no ápice da modernidade do século XIX, o pensamento de esquerda era aquele que se opunha aos poderes quase ilimitados da burguesia liberal e das práticas anti-sociais do Estado mínimo -- jornadas de trabalho excessivas, exploração do trabalho infantil, ausência de segurança no trabalho, inexistência de segurança social e etc.
Sem querer generalizar o termo, nem aprofundar a análise sobre a diversidade dos pensamentos de "esquerda", pretendo expor agora aquilo que se vem chamando de esquerda "comportada".
Primeiramente, como me parece óbvio, é relevante situar a esquerda comportada no espaço-tempo pós-moderno: neste período de re-afirmação do poder hegemônico dos detentores do capital e surgimento do neoliberalismo aético, a esquerda bem comportada tenta compor o antagonismo discursivo de manutenção de direitos sociais mínimos frente às investidas (metas econômicas) do capitalismo neoliberal; em outras palavras, no mesmo passo em que essa esquerda tenta manter privilégios corporativos e favorecimentos pessoais, ela assume que existe uma gama de direitos inalienáveis, sem os quais não é possível viver com dignidade -- o que remete a questão da pobreza para um plano subjetivo.
Em segundo lugar, convém dizer que o comportamento ou os objetivos dessa esquerda "comportada" estão sujeitos aos limites impostos pelo próprio sistema no qual ela tenta sobreviver: na sua atuação política, qualquer forma de "nudez" será castigada, isto é, a sua contestação "ideológica" é meramente consultiva e deve seguir uma pauta que lhe é colocada para discussão; assim, os ideiais revolucionários de uma ampla reestruturação social estão automaticamente excluídos de seu argumento teleológico. Dessa maneira, não só o Direito como a Política estão vazios de qualquer conteúdo emancipatório concreto.
Em terceiro lugar e finalmente, por uma razão lógico-dedutiva, a esquerda "comportada" faz parte do esquema acrítico neoliberal exatamente porque contribui para o ostracismo das idéias socialistas de fraternidade, coletivismo comunitário e solidariedade -- que seriam os princípios informadores de uma nova formatação social. Isso porque: 1) seu corporativismo exclui a participação política de outros setores sociais (os não-comportados); 2) a manutenção do status quo econômico (razão primeira de sua atuação política) exclui qualquer hipótese revolucionária de cariz socialista ou anti-capitalista, porque opta por um posicionamento reformista; 3) seu discurso centrista ou neutro (desprovido de uma ideologia concreta) inviabiliza a disseminação de práticas contestatórias eficazes; e 4) o elitismo de sua composição impede que haja uma participação das classes sociais menos favorecidas no diálogo com o Poder instituído.
Portanto, não se pode chegar a outra conclusão, senão a de que a esquerda "comportada" é uma espécie de câncer político, enraizado na democracia liberal. Sua agenda política coincide com os interesses do capital transnacional e opõe-se a ele apenas na medida da defesa de seus interesses particulares. No mais, é o reflexo vivo daquilo que se observa nos partidos políticos do mundo ocidental: a ausência de um compromisso real com a mudança pro bono publico.
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