quinta-feira, maio 08, 2008

O direito de ter direitos

Durante o mês de março deste ano, tivemos oportunidade de acompanhar duas palestras nos trabalhos do programa de doutoramento das faculdades de Direito e Economia da Universidade de Coimbra. Ambas tiveram como núcleo duro a discussão do "paradigma zero" ou Estado de Direito, nos moldes da mais clara ideologia liberal. Entretanto, nenhuma delas foi capaz de oferecer respostas às questões quer do pluralismo jurídico, quer da participação democrática, quer da materialidade constitucional, posto que os dois modelos propostos concentravam-se no argumento da "Constituição formal".

Com efeito, o primeiro colóquio, do senhor doutor professor Kafft Kosta, presidente do Tribunal Constitucional de Guiné-Bissau, trouxe-nos o atual modelo de formação estatal que se implanta naquele país e o cenário antropológico no qual se tenta, a todo custo, implementar um modelo jurídico estatal centralista e "democrático". Um dos gráficos apresentados procurava demonstrar a complexa teia social na qual se assenta a composição populacional guiné-bissauense; a constante mobilidade de pessoas para além dos limites da Guiné-Bissau, com a transposição de fronteiras com Senegal e Guiné, de já confrontou a idéia de territorialidade na aplicação do Direito, posto que, como se sabe, as fronteiras estatais africanas foram uma criação colonial e não refletem, de maneira alguma, o sentimento identitário das diversas formações étnicas ali existentes.


Outro ponto interessante no debate foi, além da formação étnica, a existência de uma série de "sistemas jurídicos" que oferecem diferentes normas de conformação social, que impossibilitam a aplicação de um Direito estatal puro; necessariamente, quer em nível jurisdicional, quer em nível de relações intersubjetivas, o pluralismo jurídico de facto impõe não só ao legislador, como, também, ao julgador a consideração de normas de uso comum que, muitas vezes, conflitam entre si e contrariam o próprio Direito de origem estatal. Além disso, do ponto de vista político, o corpo social guiné-bissauense possui uma série intrincada de poderes sociais: o poder familial, religioso, tribal e o patriarcal; a articulação dessas várias esferas de poder também contraria a criação de um sistema representativo liberal-democrata: como auferir legitimidade representativa sem a participação política desses centros de poder?

Por fim, mas não menos importante, foi constatar que o palestrante confessou o claro interesse em transpor as barreiras culturais, com o objetivo de artificializar a criação do "paradigma zero", pela importação de conceitos eurocentristas que dificilmente têm total aceitação no continente europeu; não seria isso uma clara demonstração de subalternalização do processo de formação social guiné-bissauense aos parâmetros neocoloniais europeus?

O segundo colóquio foi proferido pela senhora doutora professora Wei Dan, da Universidade de Macau, sobre a democratização da China e a formação do Estado de Direito. Na visão da palestrante, esses dois modelos se sobreporiam ao "direito folclórico" chinês (ou direito consuetudinário) e ao Estado centralista e anti-democrático chinês - mudanças que tornariam a China apta à entrada no mundo globalizado. O que chamou a minha atenção nesse discurso foi a inferiorização do pensamento filosófico chinês em relação à matriz jurídico-filosófica européia, porque, se bem vemos o assunto, existe uma forte componente conseutudinária, portanto amplamente legitimada pela prática social, a ser paulatinamente desconstruída nesse processo; em áreas tão diversas como o Direito de Família ou o Comercial, o conjunto de práticas sociais (construídas através de milênios!) terão que dar espaço à regulamentação jurídica europeísta, de modo a proporcionar a integração chinesa no comércio mundial.

Isso para não falar que a expressão "direito folclórico" da palestrante parece dar uma manta de precariedade ou "barbárie" àquilo que, na verdade, representa o common law chinês. Por exemplo: é bem sabida a pouca influência ou ilegitimidade do Direito estatal nos assuntos de Direito da Família, pois regras de casamento, sucessão, poder familiar e etc. encontram-se excluídas da competência normativa estatal de maneira quase absoluta. Outro exemplo: o Código Comercial de Macau, aprovado antes da entrega de Macau à China, em 1999, é, por si só, uma clara demonstração de que a Europa assegura para si um domínio jurídico nas relações que trava com a China, antes de pôr um verdadeiro fim à colonização; a nova onda neocolonial é, portanto, mais sofisticada que a anterior, mas ainda reserva para si as mesmas práticas de controle e dominação política.

O que nos leva a concluir que, embora os pensadores, doutrinadores e acadêmicos europeus reservem para si uma maior flexibilidade conceitual, com vista a conceber um Direito cada vez mais democrático e participativo, os centros de poder europeu ainda exportam o modelo do formalismo jurídico para além de suas fronteiras. Essa forma ideológica de conceber o Direito também tem fortes reflexos no Brasil e, porque não dizer, no Sul Global: não são poucos os autores que propugnam um Direito dogmático, desapegado das influências trans e multidisciplinares que se multiplicam nas academias européias, ou seja, enquanto a Europa entra na pós-modernidade, os países do Sul Global estão condenados à modernidade eterna. Ora! De dogmas ainda vive a religião!

No esteio dessas idéias, o desafio que nos foi proposto pelos coordenadores do curso "Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI" ainda está por ser resolvido: como articular a idéia de que é preciso um "direito de ter direitos", visto que não só o "paradigma zero", mas até o Direito (moderno) não se mostram mais aptos a oferecer respostas às novas composições supranacionais? Qual é a democracia para o século XXI e como poderá existir qualquer cidadania, após a transposição dos espaços nacionais e a eliminação das fronteiras abissais? Esses são os fenômenos trazidos pela globalização que, acima de tudo, já deixou de ser um evento meramente econômico, para alcançar áreas tão diversas como a comunicação social, a formação cultural, os choques entre civilizações e assim por diante.

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