sexta-feira, março 07, 2008

A guerra das Drogas: a cocaína

(Com a colaboração de Jorge Vitor Marques)

Cocaína: sinônimo de destruição social e abismo humano. Sendo o "ópio da América Latina" e fazendo frente à heroína (substrato extraído da papoula asiática), esta droga se espalhou pelo globo como uma epidemia, principalmente nos EUA. Todas as vezes que se fala seu nome, uns pulam de medo e, outros, de euforia. O fato é que o pó branco andino "conquistou" o mercado de consumo de drogas norte-americano - mas isso não é uma história nova, nem curta, nem muito menos bonita (o que dificulta e coloca em risco a integridade deste post e levanta o véu de mais um tabu).

Toda cultura ou civilização tem a sua droga. Os europeus "descobriram" o álcool através da fermentação: os romanos apaixonaram-se pelo vinho; os vikings conseguiram o hidro-mel; os eslavos a wodka (da batata, da ameixa, ou da beterraba); os bretões, escoceses e irlandeses inventaram o whiskey (dos cereais), e por aí vai a lista. Os asiáticos tinham centenas delas: desde a cannabis sativa à poderosa papoula... O fato é que o uso de drogas, quaisquer que sejam, sempre cria problemas sociais; mas não podemos esquecer que o tráfico delas movimenta rios de dinheiro, e a própria Grã-Bretanha lucrou muito com o comércio do ópio asiático que viciava e matava milhares de pessoas na Europa.

Outrossim, a história da Erythroxylum coca não é recente; o uso da coca é milenar; os ameríndios já mascavam a folha da coca, aplicando-a em diversos usos, a maioria deles, medicinal. A cultura andina é tão ligada à existência e uso dos componentes naturais da planta em questão que a adaptação ao ar rarefeito do alto e acidentado terreno do oeste latino-americano não teria sido possível sem a mastigação daquela folha. Contudo, o princípio ativo só produz os efeitos da droga conhecida como cocaína quando extraído em larga escala - o que significa dizer que, no material das folhas mascadas pelos índios, só existe 0,7% do princípio ativo.

Dominic Streatfield ("Cocaine", Virgin Books, London, 2002) fez o mais extenso relato sobre a cocaína; argumenta que o comércio mundial do produto movimenta US$ 92 bilhões todos os anos - gera mais lucro que a venda de "alimentos" da cadeia McDonald's, ou mais que a venda de softwares da Microsoft (dados de 2002). E esse mesmo autor alarma que o consumo da droga está longe de diminuir. Por quê? Porque muita gente lucrou com a cocaína ao longo do século XX (e ainda lucra!); seu uso medicinal ainda se dá, por exemplo, na operação cirúrgica demoninada traqueostomia; o tráfico ilícito também é fonte de recursos financeiros que move a economia de alguns países. O problema é quando o uso do produto passa do "medicinal" ao "recreativo", criando a toxico-dependência; assim como a morfina (um subproduto extraído da papoula, como a heroína, mas usado como anestésico), a cocaína desenvolve no usuário um vício químico difícil de ser superado.

O que é interessante observar - e causa certo espanto - é que a modernidade trouxe consigo não só as máquinas da produção industrial, mas novas formas de manter o trabalhador empenhado no serviço: começa o uso da cocaína como estimulante. De Sigmund Freud ao João Ninguém, o uso da coca criou não só vítimas, mas fez movimentar uma grandiosa máquina de fazer dinheiro; veja-se o clássico exemplo da empresa norte-americana Coca-Cola, que importa folhas de coca dos países latino-americanos e produz um dos softdrinks mais "cobiçados" e lucrativos do mundo. Mas não é só.

O tráfico ilegal do entorpecente propiciou rios de dinheiros a grandes latifundiários, políticos e "empresários" latino-americanos. E o que representa isso? Primeiramente, o trabalho semi-escravo de milhares de pessoas, obrigadas ao cultivo da planta. Segundo, o envenenamento de adultos, jovens e crianças pelo consumo da droga. Terceiro, a criação de cartéis e organizações criminosas no grande Continente Americano (Norte, Centro e Sul), com a disseminação da violência e da corrupção por todos os lados. E, por fim, o continuismo de regimes autoritários que, ajudando o branqueamento de capitais (lavagem de dinheiro), garantem o conforto de poucos às expensas do sofrimento de muitos.

O que torna a situação ainda pior é que, no meio disto tudo, surge o grande Tio Sam, promotor da "justiça mundial" ou a "palmatória do mundo", espalhando a instabilidade política na América Latina. Isso requer uma profunda reflexão, sobre vários pontos. Primeiro, a quase-ocupação da Colômbia (através de uma parceria com o atual regime) não porá fim ao cultivo da planta; parece haver mais um acordo para o estabelecimento de cotas de "importação (i)legal" que os EUA estariam dispostos a admitir, tendo em vista que um dos principais produtos de exportação da economia colombiana é a coca. Segundo, os barões da coca colombiana fazem parte do governo de Uribe, como já vem sendo denunciado paulatinamente pela mídia mundial; o sistema semi-feudal colombiano continua a impulsionar a plantation da coca. Terceiro, o que algumas autoridades colombianas estão a fazer é o que todo grande capitalista deseja: eliminar a concorrência que, no caso, é as FARC. Quarto, em decorrência do que foi dito logo atrás, as FARC competem com o governo colombiano direta (lutando por autonomia política) e indiretamente (quando atrapalham os negócios sujos de pessoas ligadas ao governo colombiano).

Por fim, deve-se dizer que não há mocinhos nesta história de bang-bang americano: existe um choque entre questões axiológicas e pragmáticas que não pode ser vendido como um produto pela mídia hegemônica. O conflito interno colombiano tem sim raízes políticas; o problema é que as FARC só dispõe de uma fonte de recursos (a coca, que ainda é "compartilhada" com o Estado colombiano!). Nesse aspecto, pode-se supor que um apoio legítimo, democrático e até salutar poderia - sim - ser dado pela Venezuela e Equador: se a questão é a emancipação de uma parcela (ou de todo o povo colombiano), porque não substituir o dinheiro sujo da cocaína pelo apoio logístico dos povos vizinhos? O único problema nisso seria uma guerra declarada da Venezuela e Equador à Colômbia (e seu "amigo oculto", os EUA) - mas os povos irmãos não desejam a guerra, somente aquela velha e conhecida nação do Norte, que espalha o terror pelos quatro cantos do mundo em nome de uma tal "democracy": mas o nome da palavra é DEMOCRACIA!

Existe aqui um fato incontornável: Colômbia e EUA fazem terrorismo de Estado e as FARC fazem tráfico internacional de cocaína. E agora? Agora, é analisar quando os meios justificam os fins, quando os fins justificam os meios e quando tudo é uma questão de princípios.

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