Me vejo confrontado com duas realidades interessantes: uma política e outra econômica. Ambas fazem parte de uma mesma lógica, a qual estamos todos sujeitos e d'onde existem poucos pontos de escapatória. Na realidade, posso dizer que a situação que vou comentar agora me coloca com a corda no pescoço - o que requer alguma orientação. As duas têm seus próprios problemas, mas estão profundamente entrelaçadas.
De um lado, vejo a construção de espaços democráticos - pelo menos, espaços de discurso democrático. Lá, as pessoas são chamadas a debater sobre o presente e compor alternativas ao futuro. Todas as idéias são bem-vindas e todos estão dispostos a ouvir. Porém, existe um acordo invisível ou um background que estipula quais são as regras desse debate e quais são os pontos que não podem ser ultrapassados. Esse é o debate da comunicação social e, algumas vezes do meio acadêmico - com as raríssimas e brilhantes exceções dos intelectuais engajados e comprometidos com reais mudanças em prol da maioria (a maioria é o grande agrupamento de minorias). Tanto a comunicação social quanto a academia (faculdades universitárias) oferecem conjuntos de argumentos que impedem a promoção de ações afirmativas e constitutivas de um meio ambiente (natural-social) melhor: disciplina, controle, doutrinação/catequese, todas apontando para os valores individualistas da sociedade ocidental dos últimos dois séculos.
Do outro lado, estão os argumentos economicistas que tentam, a todo custo, fazer prevalecer a exploração, o domínio e a continuidade de um sistema de produção já falido e que coloca em risco todos os recursos naturais e os acordos (agreements) sobre os direitos humanos (inalienáveis, ou seja, fora do mercado). Numa sociedade na qual tudo tem um preço, só tem valor o que tem preço; desconstroem-se os valores humanos e quantificam-se as relações entre as pessoas, num projeto de coisificação que começa mesmo na instituição da personalidade a uma coisa (a empresa enquanto pessoa jurídica...). Nesse aspecto, deve-se dizer que a Economia e o Direito têm prestado um grande desserviço à humanidade, porque admitiram com passividade a concretização de uma coisa chamada "externalização": se a empresa não tem interesse num determinado assunto, se uma obra ou um acontecimento não está diretamente ligado aos seus interesses - lucros -, mesmo que esse fato ou ato tenha sido conseqüência da atividade empresarial dessa pessoa (jurídica), outra entidade - o Estado, a sociedade, os grupos civis e etc - é que devem cuidar da situação anômala ou desconfortável ou promover as medidas necessárias ao bem da coletividade. E o Direito teve um papel fundamental nessa atitude de desleixo da Economia contra o Social, pois estabeleceu "divisões, abismos e legitimidades" que impediram que o Capital cumprisse a sua função social.
Quais são os pontos de contato entre essas duas perspectivas? Vários: a exploração do trabalho humano, a condição das minorias (mulheres, populações indígenas, grupos étnicos e etc.), a destruição do meio ambiente (natural-social), a dominação dos povos famintos e miseráveis (militar, econômica, financeira, educacional e etc.), a agonia da comunidade acadêmica (pela ausência de intelectuais comprometidos com o bem comum) e assim por diante. É uma longa cadeia de eventos, em que é difícil determinar aonde começa uma causa e aonde se tem uma conseqüência.
Não há espaços para neutralidade. A imparcialidade foi uma das teorias melhor articuladas nos últimos 150 anos, para impedir que as pessoas (naturais, jurídicas e políticas) declarem quais são os seus verdadeiros interesses em determinados assuntos - fundamentando decisões "racionais". Bem, essa "atitude racional" é muito questionável. Ao menos que uma pessoa seja totalmente alienada, não lhe é possível tomar uma decisão sem um envolvimento pessoal (se bem que os psicopatas conseguem tal ardil!). Então, poderíamos concluir que uma pessoa jurídica ou é alienada ou é psicopata (porque externaliza suas responsabilidades)?
O cerne deste texto constitui um chamado à reflexão sobre os verdadeiros problemas (aqueles para os quais toda a filosofia é dispensável e se faz necessária uma boa dose de prática). Precisamos discutir com paixão e responsabilidade os problemas que estamos a enfrentar neste processo de globalização (jurídica, cultural, econômica, etc) - tarefa difícil quando temos medo de arriscar nossos empregos/trabalhos e prejudicar nosso sustento e o de nossa família. Mas uma das razões para que o façamos é que, se não lutarmos agora por respostas eficientes e ações eficazes, logo não haverá muito a defender (parafraseando o poema de Eduardo Alves da Costa). É tudo uma questão de objetivos, na qual têm prevalecido o momentâneo e o imediato mais do que o contínuo e duradouro; as pessoas têm que lutar pela sobrevivência e acabam relegando a luta social para um segundo plano, por secundária que é ante o desafio do dia-a-dia.
O atual contexto transnacional coloca as sociedades cada vez mais em contato umas com as outras. Os espaços de exclusão e de exploração reproduzem-se por todos os lados e o quê era uma bandeira de luta dos povos do Sul (países periféricos e semi-periféricos) agora está na agenda dos movimentos sociais do Norte (países centrais do sistema de produção capitalista global). A discussão sobre esses temas políticos e econômicos é trazida à força toda pelos canais alternativos, aonde os debates correm livres - contando com o apoio de pessoas determinadas a fazer a diferença: Boaventura de Sousa Santos, Michael Parenti, Avram Noam Chomsky e tantos outros. Quanto mais se criar a consciência de que todas as sociedades têm que agir em cooperação (contra a lógica da competição), melhor se propagará a solidariedade como uma das bandeiras ao século XXI. Quanto mais se falar em solidariedade, menos espaços de exclusão e diferença podem ser criados pelas elites político-econômicas que controlam a vida de centenas e milhares e milhões e bilhões de pessoas. Quanto mais se falar em inclusão e igualdade, menos injustiças podem ser cometidas em nome da acumulação desmesurada de capital e de propriedade privada dos meios de produção.
A Internet joga nesta a favor dessa perspectiva, porque coloca à disposição de todos os povos uma infinidades de fora (pl. forum) de discussões nos quais qualquer pessoa pode participar. Ela merece um estudo a parte porque é uma ferramenta à disposição do capital, funciona pelo e a favor do dinheiro e, mesmo assim, é um meio de comunicação daquilo que o meio corporativo das grandes fortunas não se dispõe a ouvir. Se a Internet é tão ameaçadora, por quê não silenciá-la? Porque pouco importa o que é dito, enquanto as empresas puderem lucrar com a comunicação digital, não vão querer saber quantas "teorias do absurdo" e "da conspiração" são compostas por hora ou minuto - um dos exemplos de ausência de preocupação moral dessas companhias é exatamente os lucros absurdos que são feitos com pornografia na Internet diariamente. Uma pessoa jurídica não tem moral! Não se magoa, nem sofre. Sua única preocupação é o lucro, e ponto.
Não basta construir a democracia sem saber o que ela realmente é! Não se pode combater a globalização sem construir uma teoria da globalização. Articular esses dois momentos é também saber que os pontos de vista políticos e econômicos não são suficientes sem uma interação com perspectivas diversas e divergentes (religião, cultura, conhecimento e ação prática). Talvez, assim, seja-me possível tirar a corda do pescoço. Mas mesmo assim, alguma ajuda é requerida.
A globalização do sistema de produção capitalista, ao contrário do que a corrente neoliberal faz crer, não traz a democracia a todos os lados do planeta. O que ela tem gerado é uma competição econômica selvagem e predatória, cujos efeitos se fazem sentir à escala global. A articulação desse fenômeno com a liberdade que as pessoas jurídicas vêm obtendo nos últimos 150 anos não encontra mais limites no território de nenhum Estado-nação, o que requer uma postura agressiva da sociedade civil em relação a esse poder ilimitado que encontra-se nas mãos de poucos indivíduos. De fato, não se pode mais falar de uma parceria pura entre Governo e Capital nos moldes do Estado-burguês, porque esse último perdeu qualquer poder de barganha com a empresa transnacional; os povos estão à mais completa mercê da macro-física do poder (pós-Foucault) que se estabelece entre os interesses de lucros trimestrais exorbitantes e a fome das populações dos países do terceiro, quarto e quinto mundos. Se o Estado moderno já agonizou e deu o último suspiro, deveríamos estar a projetar um modelo alternativo de ordem social que faça frente à governance neoliberal e sua accountability, vez que essa força vem ganhando espaços nos meios acadêmicos europeus e norte-americanos - é preciso agir antes que ela contamine as Universidades latino-americanas.
Para isso, a democracia precisa ser reinventada. Conforme sopra o vento da globalização, devem haver anteparos sociais que defendam os interesses das minorias globais. Uma nova forma de participação precisa emergir, antes que se entre numa nova fase de autofagia societal e que se coloque em jogo a segurança de toda a humanidade. Isso porque, no vento, quem sopra exala um odor amargo e nas narinas do estudante impregna-se um cheiro de totalitrasimo que paira no ar...
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