quinta-feira, novembro 03, 2005

O comércio de armas e a comunicação social: um paralelo entre Brasil e EUA (ensaio).

No início de fevereiro do corrente ano, facilitamos um trabalho junto aos estudantes do Curso de Direito da Faculdade Christus, que tinha como pano de fundo o filme “Bowling for Columbine”, de Michael More. O filme tratava do problema das armas de fogo em posse de civis nos Estados Unidos da América (EUA) e os problemas da falta de controle na venda de munições. Essas eram as preocupações principais do filme, embora temas subsidiários como a xenofobia e racismo também fizessem parte do enredo.

Como é sabida, a venda de armas e munições nos EUA é livre, havendo apenas certa regulamentação do assunto, tendo em vista que é um direito constitucional dos cidadãos norte-americanos a posse de armas de fogo para a defesa do território e da propriedade privada. O lobby em torno do tema é estrondoso, sendo a NRA (National Rifle Association of America) a principal contribuinte no apoio financeiro aos candidatos dos partidos Republicano e Democrata. Essa Associação, para além das especulações de sua ligação extremada aos membros da Ku Klux Klan, é majoritariamente formada por pessoas caucasianas – pelo que sofreu oposição nos anos de 1970 dos Black Panters (Panteras Negras), grupo armado de afro-descendentes, que faziam luta de protesto armado pelos direitos civis dos afro-norte-americanos. De fato, o NRA patrocina a defesa do direito dos cidadãos norte-americanos de possuírem armas de fogo, fazendo propaganda e campanha em todo o território nacional em defesa desse “direito sagrado”, coletando fundos, organizando palestras e congressos ao redor daquele país, ainda financiando filmes em Hollywood e patrocinando estrelas do porte do governador republicano da Califórnia, o ator Arnold Schwarzenegger – que por coincidência, é o protagonista em pérolas como “Exterminador do futuro” e “Comando para matar”.

A comunicação social teve um papel marcante na história recente da humanidade: foi capaz de atingir milhões de pessoas a um só tempo, com o advento da televisão; por ser a ciência social do jornalismo, teve a capacidade de entender a psicologia de comportamento das massas – momento no qual o indivíduo deixa de se comportar individualmente e passa a manifestar o comportamento coletivo; influenciou milhões de seres humanos com as mais variadas ideologias, desde o fascismo e o nazismo até a democracia liberal instalada recentemente na América Latina e a defesa da vida humana nos países africanos como a Etiópia. Criam-se deuses, criam-se monstros, criam-se e defendem-se valores sociais, metas, objetivos, goals administrativos e econômicos, e a mídia faz o seu papel no mundo do Capitalismo pós-moderno.

E é aí que entra-se na discussão: “qual é o relevante papel da mídia na criação de uma ideologia da posse de armas pelos civis? Qual é o interesse que existe no desarmamento da população?”. Para refletir nosso pensamento nessas perguntas, utilizaremos dois modelos: os meios de comunicação social brasileiro e norte-americano, na busca de um paralelo ou de pontos de convergência entre os dois.

Notório e polêmico foi o referendum sobre o fim da comercialização das armas de fogo no Brasil. Como sugere o tema, aparentemente, a finalidade da votação popular era deliberar sobre o fim da venda de armas de fogo em território nacional, mediante a participação popular na escolha por um regime “guns free” neste País. A despeito de qualquer discussão jurídica em torno da lisura dos procedimentos adotados, que deveriam estar em consonância com o espírito constitucional, que foi objeto de uma ação direta de inconstitucionalidade sobre o tema, outras questões de cunho filosófico e sociológico deve ser abordada. A mídia brasileira, os meios de comunicação social apelaram para o discurso emotivo do fim da violência, mostrando dezenas ou talvez centenas de casos do uso de armas particulares nos mais variados tipos de crimes contra a vida, enfatizando que a população precisava ser desarmada. Os argumentos eram vários, pró-desarmamento, mas convém analisar se são bem fundadas essas pretensões. Senão, vejamos.

O cidadão comum, aquele trabalhador de 7h às 19h, que cumpre com seus deveres fiscais, civis e políticos, já é um cidadão desarmado, em vários sentidos, uma vez que não pode contar com o aparto repressor do Estado para a defesa de sua família e patrimônio, não pode exercitar-se nas vias públicas nem tampouco ir comprar o pão à duas quadras sem o temor do assalto ou seqüestro relâmpago. E, detalhe: esse bom homem não sai de casa armado. Quem está armado é a bandidagem, e muito bem armada! Protegida por um sistema de normas jurídicas e um sistema penitenciário falidos, protegida pela incompetência e pela impunidade, além de protegida pela má remuneração das corporações militares estaduais, responsáveis pela polícia ostensiva no País. Ademais, um projeto dessa magnitude, do fim do comércio legal de armas no País, deve levar em consideração uma série de fatores: regionais, locais, circunstanciais. E a mídia, massificadora por origem e destinação de sua atividade, desprezou todos os tipos de considerações em torno das especificidades de cada região: a violência urbana do Rio de Janeiro é diferente da praticada em Fortaleza ou Natal, na origem ou causas e nas conseqüências. Ainda, deve-se comentar, em tempo, que existem outras soluções – já em prática -, na contenção da vioência: a chamada lei seca ou o toque de recolher que, em cidades como Diadema, têm produzido reduções gritantes no nível de violência. A população brasileira já está desarmada; os traficantes e bandidos obtêm suas armas do comércio ilegal, do tráfico internacional de armas de fogo, com dinheiro obtido do tráfico nacional e internacional de entorpecentes.

Pública e controversa é, também, a quase total falta de controle do comércio de armas e munição nos EUA, impulsionada por uma cultura pró-armas, em que a mídia, os meios de comunicação de massa são os principais responsáveis pelo constante estado de medo no qual vive a população. Com efeito, programas de grande audiência como “Cops” – que no vernáculo das redes de televisão a cabo brasileiras denomina-se “Perseguições fantásticas” ou algo do tipo -, estimulam o medo das minorias étnicas norte-americanas, semeando o medo dos caucasianos pelos negros, dos negros pelos latinos, dos latinos pelos asiáticos, de todos pelos muçulmanos e assim por diante, numa espécie de espiral do medo. A situação criada pelos “inesperados” atentados terroristas de 11 de setembro de 2000 só vieram a agravar a relação doentia da mídia com o poder yankee. Na realidade, o que se pode perceber é que a grande culpada pela violência é a conseqüência (criminalidade) e não a causa (segregacionismo, racismo, problemas econômico-sociais, modelos educacionais ineficientes), a exemplo do quê ocorre na mídia tupiniquim – só que em menor escala. Desde a primeira hora da manhã até os noticiários da madrugada, os canais de televisão mostram apenas uma situação recorrente: violência, crime, crime, violência; cardápio indispensável na formação das audiências daquele país, porque violência e sexo vendem – eis a fórmula garantida para uma grande reportagem ou um grade filme – é só estudar os sucessos de bilheteria e comparar com as premiações da mídia e a remuneração dos atores hollywoodianos. Ainda, a cultura norte-americana está fundamentada na idéia de supremacia militar, do “lar dos bravos, terra dos livres”, conquistada através do sangue (dos nativos que habitavam originalmente o continente), nação que jamais teve seu território invadido.

É curioso observar os dois exemplos, que não necessariamente são extremos entre si. De um lado, um país em desenvolvimento, que não zela pelo seu patrimônio histórico, que convive diariamente com a corrupção, o desrespeito à lei e o descaso das autoridades, que mantém a discriminação e a segregação em níveis de comparação econômica. De outro lado, um país desenvolvido, que procura manter sua tradição e impor sua cultura ao redor do planeta, que tem certo apego à lei e à ordem, e mantém a discriminação e segregação em torno de conceitos predominantemente étnicos. De ambos os lados, as similaridades são várias: a riqueza abundante e a má distribuição de renda, a manutenção das camadas ou classes sociais através da competição capitalista selvagem, a falta de uma identidade nacional etc. E, enquanto num desses países, a mídia gastou imensos recursos com o desarmamento, noutro os meios de comunicação de massa não poupam esforços para a manutenção da comercialização legal e cada vez mais permissiva da posse de armas de fogo. Aonde reside a lógica nesses movimentos antagônicos? Seria pelo fato de o Brasil ser um país pacífico? O Brasil é um país pacífico? Ora, nós também temos uma tradição histórica belicosa, como foram os conflitos da cisplatina e na Região Norte, para não falar dos massacres do começo do séc. XX – como o que aconteceu em Canudos. Seria pelo estado de guerra civil em que se encontram as grandes capitais? Bem, essa pergunta requer uma maior reflexão, pois tem que levar em consideração fatores como ineficiência das políticas de segurança, grande concentração de pessoas nos centros urbanos (uma característica dos países sub e em desenvolvimento) e a crescente desobediência civil – gerada pela insatisfação do povo/população em relação ao Governo. Entretanto, apostar no terror é ferramenta do meio mediático brasileiro, tanto que o sucesso das emissoras de televisão local prova esse comentário: Barra Pesada, Rota 22, o famigerado Mão Branca, todos eles foram ou são programas com autos índices de audiência que utilizam a imagem (digna) do homem para aumentar o fosso que separa as classes sociais no Brasil, por meio da discriminação social – mesmo que de forma inconsciente.

A quem beneficiaria o desarmamento? Aqui reside a liberdade de cátedra: do ponto de vista político, àqueles que lucram com o medo e com a violência, que ajudam a elite a manter no poder e lá se perpetuar nos esquemas oligárquicos nacionais e, do ponto vista econômico, àqueles que desenvolvem a lucrativa atividade de proporcionar, principalmente à classe média, os serviços de segurança privada. Ora, quem já tentou adquirir uma arma de fogo sabe muito bem dos trâmites e da rede burocrata que existe por trás dessa compra, para não comentar dos gastos financeiros envolvidos, que tornam esse tipo de comercialização uma atividade não muito vantajosa, devido à dinâmica da oferta-procura e à constatação de que a demanda por armas é muito reduzida, o que acaba por enfraquecer o mercado, enquanto o destinatário do serviço é o cidadão comum e não a empresa de segurança. Ressalta-se, ainda, que, quanto ao mercado de armas tupiniquim e ao yankee, existem diferenças gritantes, para não dizer que são completamente diferentes: lá, além de um maior poder de compra, associado aos baixos custos do armamento, existe uma enorme diversidade de marcas e modelos, além de uma forte concorrência mercadológica que pressiona o preço dos produtos.

Contudo, o que lá impera, aqui não se deseja. Não parece muito razoável o desejo de um mercado brasileiro desregulamentado ou regulamentado no modelo norte-americano, aonde é possível adquirir uma pistola ou rifle em todo o tipo de estabelecimento comercial, dependendo do Estado-membro e de sua legislação. É bem natural que o Estado exerça sua atividade de controle da propriedade de armas, enquanto detentor do monopólio do binômio sanção-coação, mas proibir a comercialização de armas de fogo sem garantir a proteção do cidadão pacato e ordeiro é uma irresponsabilidade histórica. Isso seria possível através de uma política nacional e políticas estaduais de segurança, aliadas à Educação e melhoria da qualidade de vida das populações, uma vez que são bem conhecidas as origens do poder das facções criminosas entre as famílias de bem: pobreza e insatisfação.

sábado, outubro 15, 2005

Constituição comemora aniversário... brasileiro lamenta

Manchete publicada no aniversário da Carta Política brasileira: "Após 17 anos da Constituição Federal de 1988, editados mais de 3 milhões de leis"

"Nos 17 anos que a Constituição Federal de 1988 completou no último dia 5, o país foi palco de um verdadeiro festival de normas de todos os tipos. No total, Federação, Estados e Municípios editaram nada menos do que 3.434.804 leis ordinárias, decretos, normas complementares, medidas provisórias, emendas constitucionais e outros textos normativos, além da própria Carta Magna." (Publicado em Espaço Vital, em 11/10/2005).

São aproximadamente 554 leis por dia! 554 leis por dia, se considerarmos que os legisladores trabalham de segunda à segunda, sem sábados, domingos ou feriados (!) - o que sabemos ser uma inverdade. Diante disto, vou me limitar a fazer estas perguntas:
  1. Será que estamos diante de um sistema de leis estável?
  2. Nossos concidadãos têm condições de acompanhar uma produção legislativa dessa magnitude?
  3. Estamos diante de um Estado Democrático de Direito responsável e sadio?

terça-feira, setembro 27, 2005

Parar para (re)pensar o Brasil

O silêncio das últimas semanas foi necessário para uma reflexão sobre o que vem ocorrendo em nosso País. Os fatos são claros, mas o mundo das aparências é apenas uma imagem daquilo que ocorre realmente e conhecer a realidade exige uma abstração de nossa própria atuação enquanto "ser-agente". Contemplar sem paixões. Impossível tarefa, uma vez que admito ser quase impossível não traçar o mínimo comentário sem impregnar o texto de interesse (paixão) por aquilo que acredito...

A crise está instaurada: a sociedade e todos os seus ideais estão sendo vítimas de um vilipêndio que remonta ao caos. Mas, convém perguntar: o que motiva toda esta enxurrada de denúncias de corrupção, falência das instituições, desconfiança generalizada...? O que está por trás disto tudo? Ora, a resposta a isso não é tão simples como pode parecer. Temos que olhar para o âmago, para a origem desses problemas, porque eles são apenas as conseqüências visíveis de algo muito maior; a semente disto tudo que vem nos impressionando, dia a dia, não é o problema em si, mas a conclusão de um engendrado desequilíbrio social. E esse desequilíbrio não é causado pela "política" - é, antes de tudo, originado pela falência do ser político-social brasileiro: o cidadão.


Com efeito, a democracia é uma idéia antiga, mas seu ressurgimento (depois dos séculos de trevas do período medieval) é muito recente, podendo mesmo se afirmar que provém do Iluminismo e do fim do Absolutismo, com o surgimento, portanto, do Capitalismo e do poder burguês [É interessante observar que a democracia no Brasil tem apenas 17 anos (!), com a República de 1988]. Não haverá aqui qualquer menção a fatores econômicos - não é a isto que estamos dispostos aqui a discutir. Queremos ir além. Queremos chegar à idéia básica na qual repousa a noção de que "a soberania ao povo pertence" e, portanto, o poder de autodeterminação e autonomia enquanto nação. Pois bem, se compete ao cidadão exercer o controle do seu destino por meio da liberdade, seria muito natural deduzir que a situação de todos os povos é conseqüência dos ideais eleitos pela maioria (ou pela coletividade, o que dá quase no mesmo). Então, é necessário além de um pacto anterior ao nascimento das regras sociais, um conjunto de objetivos a serem alcançados por essa sociedade democrática (mesmo que seja um corpo social hipotético). Assim, na busca de sua felicidade, ou mesmo não de uma felicidade (o termo é muito genérico), mas na busca de uma ordem mínima qualquer, o cidadão vai eleger os meios dos quais se utilizará para atingir seus objetivos. Senão vejamos. Uma nação independente escolhe seus governantes (na democracia), que os representarão na institucionalização do Poder (Estado), para atingir o fim do Bem Coletivo (princípio básico dos ordenamentos jurídicos democráticos) e esse "bem" não é necessariamente uma "felicidade" ou um estado de "bem estar", porque pode exigir da sociedade sacrifícios - nada mais natural.

Contudo, exigir sacrifícios impõe uma contraprestação e esta se resume na própria garantia de estabilidade e de paz que é entregue a esta sociedade por meio das leis e do Direito, além da própria realização de uma justiça - estão aí jusnaturalistas e positivistas que podem concordar com estas idéias. A discussão, também não gira em torno das teorias do Estado ou do Direito. É puramente uma discussão sobre a moral e a razão. Não parece racional (e aí usamos o termo de uma maneira mais livre) que o cidadão brasileiro possa suportar sacrifícios quando vê a impunidade, o descontrole e o despotismo reinarem de maneira absoluta dentro da sociedade em que estão inseridos - visão esta conseguida com a ajuda dos meios de comunicação em massa. O quê o cidadão comum sente é que não existem parâmetros ou controles sobre os representantes do Poder e não só dos representantes, mas também daqueles que são "letrados" e daqueles outros que aplicam a lei ao caso concreto... Os exemplos estão aí; não é mais "à boca pequena" que correm os escândalos de abuso de autoridade e corrupção no Estado - é tudo levado à hora do almoço, ou à hora do jantar, para os trabalhadores e suas famílias que se sentam à beira da televisão para se alimentar (de uma comida cara e de qualidade duvidosa). Qual é, então, a conclusão que estas pessoas chegam? Que não há respeito por nada, nem por ninguém e que "otário" é quem se preocupa com coisas ultrapassadas, por exemplo, honestidade, boa educação e conduta adequada (ética). Assim, desde pequenos, nossos jovens e crianças estão sendo "educados" com base nas premissas de injustiça e desonestidade, o que representa o descaminho de toda uma geração de brasileiros. Nem mesmo as coisas mais "sagradas" para um brasileiro, paixão que o identifica em qualquer lugar do mundo, estão a salvo desse massacre ideológico: futebol (corrupção), carnaval (crimes sexuais, drogas, etc.). O que há de errado? O que há de errado é que, pelo próprio fato da impunidade ser fator de admiração do espectador ao infrator (exemplo do deputado cantor, envolvido nos escândalos da CPI dos Correios), o cidadão e toda a sua família estão sendo subjugados por uma inversão completa de valores.

Mas esta "planta" não brotou de uma hora para a outra; foi trabalho árduo de uma elite que se perpetuou (ainda se perpetua?) no poder durante décadas! Essa mesma elite que proibiu o ensino de Filosofia, Moral e Cívica e Cidadania nas escolas, que instituiu uma censura que até hoje perdura, que veicula somente as informações que julgam convenientes e, (pasmem) mesmo à "classe dos letrados" sonega informações históricas da formação do pensamento moderno e dos atuais paradigmas das civilizações economicamente mais poderosas. É tudo uma questão de controle: controle social. É bem natural que o povo eleja os seus valores, mas deve elegê-los mediante a experiência, o conhecimento, o saber; num País aonde não há educação, não há zelo pela coisa pública ou mesmo patriotismo (que hoje parece uma palavra tão vulgar...), nunca haverá espaço para o nascimento de uma "civilização" (neste caso, oposto de barbárie). E é no País da barbárie que estamos todos, agora, submersos, porque não há mais entre nós os valores que julgávamos possuir (e que nos foram tirados, aos poucos): igualdade, dignidade, fraternidade, solidariedade. Num ambiente de corrupção desmedida, todos esses valores são absolutamente irrealizáveis. E coitado daquele que se insurgir contra isso: ou é "doido", ou não conseguiu "meter as mãos na cumbuca"!

Qual é o papel das nossas instituições? Quem é o responsável pela formação dos cidadãos? Qual será o remédio para conter os abusos dos indivíduos mal intencionados frente àqueles que assumiram (ou melhor, ainda teimam em assumir) um compromisso com a seriedade? Como é que vamos educar pessoas que não têm ideais voltados à sociedade (que vivem num individualismo exacerbado e corrupto!)? Sim, individualismo corrupto. Porque existem países no mundo onde impera o individualismo, mas essa conduta diz respeito apenas à liberdade na autodeterminação do destino pessoal, nunca uma imposição dos interesses individuais de encontro aos coletivos; o indivíduo é considerado e respeitado, e executa um sacrifício pessoal para a realização do Bem Coletivo, que assegura a própria manutenção de sua Nação - povos que têm orgulho de sua História e suas tradições e costumes defendem a sua Cultura, contando com a participação individual - cidadão, neste caso, é um dos guardiões do presente do Estado.

E por falar em presente, ser um "País do futuro" não traz nenhum benefício aos que dele dependem. Mas, atenção: nós dependemos tanto do nosso País como ele de nós. Não há Estado sem povo, mas pode haver Estado sem cidadão e o passado confirma categoricamente esta idéia (veja-se o exemplo da dominação romana sobre os povos europeus). É exatamente por isto que não temos um tempo presente saudável: não temos memória e isto quer significar que não nos conhecemos enquanto Nação e, enquanto isso não acontecer, o futuro nunca chegará.

Temos que (re)educar o nosso povo... ou educá-lo finalmente.

sábado, agosto 20, 2005

Reintegração de posse em São Paulo, sob violência policial

É lastimável o acontecimento da semana passada, em São Paulo, que envolveu mulheres, crianças, idosos e homens de bem, todos eles humildes e carentes. Com efeito, tratava-se de uma reintegração de posse do Prédio da Luz, ocupado por sem-teto há mais de 2 anos, com direito à presença da força policial militar e à velha utilização de gás pimenta, socos, tapas e pontapés, além do velho e bom cacetete. Ainda, inconformados, os policiais fizeram uso de bombas de gás lacrimogênio e balas de borracha na multidão.

Ora, o que convém aqui analisar são dois aspectos: a questão da função social da propriedade privada e a própria noção de justiça social e o uso da violência pelo Estado.


No primeiro aspecto, estabelece a Constituição da República que a propriedade atenderá a sua função social. Mas, qual é a função social da propriedade? Vivemos num país de 50 milhões de miseráveis, concentrados de forma irregular e desumana nos grandes centros urbanos do País. Essas pessoas, esses seres humanos, iguais a nós em todos os sentidos jurídicos (mas não econômicos) são submetidas, diariamente, a toda espécie de vexação, privação de condições mínimas de sobrevivência e, quando muito conseguem, não dispõem da menor dignidade enquanto pessoas. Esses mesmos seres humanos, sujeitos de direitos inalienáveis e irrenunciáveis, não têm acesso aos serviços básicos (moradia, saúde, educação, transporte, lazer) que deveriam ser prestados pelo próprio Estado (leia-se, aqui, País), seja através dos programas sociais ou da política social. No caso em tela, os "sem-teto" são aquelas pessoas que não possuem uma moradia (própria ou não). O que se chama aqui atenção é que, mesmo sendo um sistema capitalista de produção, aonde cada um tem que lutar pela sua própria sobrevivência na "selva" de asfalto, há alguns direitos básicos sem os quais os seres perdem a sua qualidade de "humano", que designa a nossa espécie. E um deles é o direito de ter acesso à uma moradia, que proteja o indivíduo e sua família das intempéries (frio, calor), das bestas e das doenças. Mas estamos aqui a falar da propriedade privada. E o que a propriedade privada tem haver com isso? Bem, de acordo com o Legislador Constituinte, aquele grupo que criou o Estado brasileiro, o uso da propriedade tem estar sempre voltado ao bem comum, ao bem da coletividade, aos anseios da sociedade como um todo. É nesse sentido que existem normas que proibem e defendem os vizinhos do uso nocivo da propriedade privada de alguém. Mas o conceito é mais amplo a nível constitucional do que em nível cível. Trata-se de um direito básico da humanidade, e a Constituição brasileira, na busca de uma justiça social, que não só dê a cada um o que é seu, mas, indo além, dê a cada qual aquilo sem o quê ela não pode sobreviver, propôs-se a delegar ao cidadão um direito contra o abuso do poder econômico (de concentração de riquezas, que exclui o pobre do acesso aos bens). Assim, por meio do Estado de Bem Estar Social, modelo econômico também presente em nossa Constituição jurídica, a sociedade "prometeu" à população que a propriedade privada não seria um meio de exploração e de exclusão social, sendo esta promessa feita pela elite brasileira (não só a econômica, mas também a intelectual) ao cidadão comum - que desconhece seus direitos fundamentais.

Entretanto, partir de "pura poesia" (como entendem alguns aplicadores do poder de polícia) para a realidade é constatar o que de mais grave aconteceu nesse incidente. A violência utilizada pelo corpo de intervenção da polícia militar faz lembrar os mais negros momentos de uma ditadura que parece ainda não haver desvanecido dos cenários político e social brasileiros. Não é preciso dizer muito a este respeito, uma vez que as imagens são claras e outra interpretação não parece ser possível. No cumprimento de uma determinação judicial (injusta, porque justiça não pode ser apenas aquilo que provém da caneta de um magistrado), os policiais atiraram bombas de gás lacrimogênio diretamente nos manifestantes, ferindo inclusive repórteres e transeuntes. Ora, não se pode utilizar aquele equipamento militar apontando-o diretamente às pessoas, visto que um disparo com aquela arma na posição horizontal pode matar. Dirigirem-se, por comando superior, aqueles homens fardados, "defensores da ordem estatal", para desocupar um imóvel que servia, até a ocupação, apenas de imóvel expeculativo, com o uso da mais bruta força contra pessoas que só procuravam abrigo (diga-se de passagem que é ainda inverno na Região Sudeste), na presença de crianças e idosos. Foi cometido crime contra a humanidade, pois a aplicação de uma lei (norma positiva) contra um direito fundamental (proveniente de um princípio jurídico, predecessor da própria norma positivada), é um claro atentado contra a justiça social e um reflexo de um Estado de São Paulo totalitário e déspota.

Anda mal aquele Estado membro. Como também andam outros, que despreocupados da sorte a que estão entregues milhões e milhões, só usam da máquina estatal para defender interesses que não os sociais. É lamentável e uma vergonha. Brasil: um País injusto.